Kiko Nogueira, no DCM
“Annie
Hall”, o melhor filme de Woody Allen, tem uma cena particularmente impagável
(entre muitas outras). Alvy Singer, o alter ego do cineasta, está numa fila de
cinema com a namorada.
Um
sujeito começa a falar com empáfia e superioridade de Marshall McLuhan, velho
guru da teoria da comunicação. Allen não aguenta e pede que ele pare com as
bobagens.
O
homem rebate alegando que dá aula numa universidade sobre tv, mídia e cultura e
é especialista em McLuhan. Allen resolve, então, tirar o próprio Marshall
McLuhan de trás de um pôster para confrontar o fanfarrão: “Eu ouvi o que você
estava dizendo. Você não conhece nada do meu trabalho. Entendeu tudo errado. O
fato de você dar um curso de qualquer coisa é inacreditável”.
De
certo modo, foi o que três advogados fizeram com Antonio Anastasia. Festejado
por luminares como Ronaldo “uma voz em busca de um cérebro” Caiado e Aloysio
Nunes como um Einstein do direito, um Ruy Barbosa reeditado, Anastasia tomou
uma reprimenda pública de autores mencionados em seu próprio relatório do
impeachment.
Lenio
Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Alexandre Bahia foram
mencionados erroneamente na peça. Anastasia usou-os para defender o contrário
do que eles acreditam. Isso se chama, para começar, desonestidade intelectual.
Eles
escreveram um
artigo expondo a fraude num site. “O senador Anastasia nos cita para tirar
uma conclusão com a qual não concordamos”, escrevem. É uma cereja a mais no
bolo de uma farsa jurídica que se avoluma de maneira impressionante.
Anastasia
já não tinha condições morais para ocupar a relatoria da comissão especial do
impeachment por razões óbvias: ser do PSDB e ter pedalado loucamente. No
entanto, o baile seguiu.
Depois
das palmadas de Streck, Cattoni e Bahia, ele merecia, no mínimo, ser obrigado a
se ouvir, em seu tom agudo monocórdio, recitando o texto dos juristas. O golpe
fica nu, mas segue adiante. Pobre Brasil.
A
nota crítica:
A citação feita no Relatório
Anastasia[1] do texto dos comentários ao art. 85 da Constituição da República
que escrevemos[2] não considera de modo adequado a integridade do texto, nem do
trecho referido. Para nós, o fato do rol do art. 85 ser exemplificativo reforça
ainda mais a exigência prevista no parágrafo único do mesmo artigo da
Constituição de que a lei especial e regulamentar tipifique e defina os crimes
de forma completa, afastando, portanto, “tipos abertos”, bem como a
interpretação extensiva ou por analogia – o que não é possível por se tratar de
crime. Indicamos, portanto, a leitura do trecho dos Comentários à
Constituição do Brasil:
“Para os crimes de
responsabilidade valem os dispositivos constitucionais e sua regulamentação
através da Lei 1.079/50.” E, logo em seguida, “O rol previsto no art. 85 é
meramente exemplificativo, constando sua definição completa naquela citada
norma infraconstitucional”, ou seja, a Lei 1.079/50. Este é o último parágrafo
do texto dos comentários ao artigo 85, inComentários à Constituição do
Brasil, p. 1287. Depois de ter explicado, portanto, que a Lei 1.079/50 tipifica
os crimes.
O Senador Anastasia, assim, nos
cita para tirar uma conclusão com a qual não concordamos, pois o fato de o
elenco do art. 85 ser exemplificativo não significa que esteja afastada a
exigência de previsão legal taxativa dos crimes de responsabilidade, conforme o
parágrafo do mesmo artigo.
Como na Carta aberta a Anastasia
que foi encaminhada por professores, estudantes e servidores da Faculdade de
Direito da UFMG:
2) A CR/88 dispõe em seu art.
85, parágrafo único, que uma lei especial definirá os crimes de responsabilidade
e estabelecerá as normas de processo e julgamento do impeachment. Esta lei,
como já afirmado pelo STF no julgamento do caso Collor em sucessivos mandados
de segurança (MS 21.564, MS 21.623 e MS 21.68) e agora na ADPF 378 é a Lei
1079/50. Entendemos que em consonância com o devido processo constitucional as
hipóteses de crime elencadas pela lei do impeachment devem ser atendidas
taxativamente, não cabendo, portanto, interpretações extensivas ou analógicas
em respeito às garantias do próprio sistema presidencialista, e do ordenamento
jurídico como um todo, em que restrições de direitos devem ser interpretadas de
forma taxativa.”[3]
Para a Constituição da
República, justamente porque o rol é exemplificativo que a lei especial
regulamentará tipificando os crimes, por uma questão de segurança jurídica! Ou
seja, cabe à lei especial definir por completo. Como diria Gomes Canotilho,
estamos diante de uma vinculação expressa do legislador à Constituição.
Sabemos, pois, quais são os crimes de responsabilidade e qual o procedimento de
impeachment porque a Constituição estabeleceu os parâmetros no art. 85,
incisos e parágrafo, e no art. 86 (também art. 51, I, e art. 52, I), e a Lei
1.079/50 os regulamentou, prevendo, taxativamente e definindo de forma
completa, os tipos penais.
Não cabe assim interpretação
extensiva e analógica dos crimes completamente definidos pela lei especial
prevista no parágrafo do art. 85. O preceito fundamental em questão é mesmo o
princípio da reserva legal. Somos, pois, daqueles que concordam com Marcelo
Neves[4] e Alexandre Morais da Rosa[5] no sentido de que crime de
responsabilidade é crime e se submete à reserva legal, em lei específica, no
caso, a lei 1.079/50, no que foi recepcionada[6]. O fato de o rol do art. 85
não ser numerus clausus não afasta, muito antes pelo contrário, a
exigência constitucional, prevista no parágrafo único do art. 85, de que a lei
especial taxativamente o faça. Ou, como dissemos no texto dos Comentários,
defina completamente os crimes. Questão mesmo de segurança jurídica, não há
como se falar em “tipos abertos”. Ou seja, o Senador Anastasia termina por
tirar conclusões com as que jamais concordaremos.
A estratégia do Relatório
Anastasia é a de se admitir que não há a tipificação taxativa dos crimes de
responsabilidade, mas que isso “não é um problema”, pois que “o tipo seria
aberto” e, então, poder-se-ia a ele aderir legislações e capitulações que lhe
são estranhas, como a responsabilidade fiscal ou qualquer outra. Ora, se há
previsão de hipóteses de “crime de responsabilidade” e “crime comum” de
Presidente da República, a serem apreciados em processos diferentes, é
justamente porque há crimes, ainda que diferentes.
Cabe lembrar, ademais, que,
embora estejamos numa República democrática em que, com certeza, o Presidente é
responsável, o sistema de governo constitucionalmente adotado é o
presidencialismo e não o parlamentarismo. Logo, no Brasil, o Presidente da
República só pode ser impedido quando estiver configurado crime, segundo a
Constituição e nos estritos termos da legislação a que a própria Constituição
se refere.
Nesse sentido, cabe dizer que é
perceptível desde o início qual seria a estratégia do relatório. A estratégia
de pretender descaracterizar o caráter de crime do crime de responsabilidade
para defender a possibilidade de afastar a exigência jurídica de taxatividade
dos crimes previstos em lei especial, abrindo espaço para a interpretação
extensiva e por analogia, defender uma responsabilidade objetiva, sem dolo, e
por atos que a Presidente não cometeu, como bem mostrou Alexandre Morais da
Rosa[7], mesmo no caso das chamadas “pedaladas fiscais” (sic) referentes
ao Plano Safra, fato atípico posto que não há de se confundir o atraso no
repasse dos valores referentes a subvenções sociais com operações de crédito e
onde sequer há atos cometidos pela Presidente da República, como bem mostrou,
mais uma vez, Ricardo Lodi[8].
O que se faz, ao fim e ao cabo,
revela, justamente o que nós, e os demais autores aqui citados, temos dito
desde o início: trata-se de uma flagrante inconstitucionalidade que sacrifica o
caráter jurídico-político, portanto, constitucional, do instituto do impeachment
para reduzi-lo apenas à vontade de uma maioria tardiamente formada.
Leia mais sobre temas
da atualidade: http://migre.me/kMGFD
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