A editora Anita Garibaldi
lança "Repensando o Marxismo" do jornalista Duarte Pereira, destacado
intelectual marxista. Suas reflexões esparsas sobre o período de defensiva
estratégica que vive o socialismo, foi reunida neste trabalho, tornando-a mais
acessível.
No final da
década de 1960 e início de 1970 ele foi dirigente da Ação Popular
Marxista-Leninista (AP-ML) e, também, um de seus ideólogos. Dele, por exemplo,
partiu a proposta vitoriosa de unificação orgânica daquela organização com o
PCdoB.
Durante essas
últimas décadas, especialmente desde a crise das experiências socialistas na
URSS e no Leste Europeu, Duarte continuou fazendo palestras e produzindo textos
seminais refletindo sobre as razões daquela crise e as perspectivas da teoria
marxista e do movimento socialista nessa nova etapa histórica que estamos
vivendo: um período que podemos caracterizar como defensiva estratégica.
Contudo, esses trabalhos, embora importantes, se encontravam dispersos em
várias publicações, nem todas de fácil acesso aos interessados.
Visando
torná-los acessíveis a um público maior, o dirigente do PCdoB Haroldo Lima, com
a ajuda do próprio autor, selecionou os textos mais expressivos e organizou
nessa coletânea. São eles: A crise do socialismo, a reestruturação do capitalismo
e os novos desafios dos trabalhadores; Lênin e a Dialética hegeliana; O
marxismo e o proletariado; Uma nova classe trabalhadora; Com os operários à
frente; Das classes à luta de classes; Mao e o socialismo; Seis observações
sobre a China e A polêmica sobre o Tibete.
Parte
significativa de sua produção teórica e jornalística foi publicada nas páginas
da imprensa democrático-popular – chamada de alternativa nos tempos da
ditadura. O jornalista é autor de livros como "Um perfil da Classe
Operária" (1981), "1924: O diário da revolução - Os 23 dias que
abalaram São Paulo" (2010), entre outros.
Leia abaixo a
apresentação escrita por Haroldo Lima e ADQUIRA
O LIVRO CLICANDO AQUI
Repensar e desenvolver o
marxismo *
Por Haroldo Lima
**
O marxismo, doutrina fundada por Marx e Engels na segunda metade
do século XIX, influenciou grandemente o pensamento progressista do mundo,
desde então até hoje. Os maiores movimentos revolucionários do século XX, a
Revolução Russa de 1917 e a chinesa de 1949, apoiaram-se em seus preceitos. As
duras lutas de libertação nacional – a do Vietnã e de vários países africanos –
também. E a febril atividade democrática, socialista e comunista, teórica e
prática, presente na maior parte dos países durante todo o século passado,
norteou-se por suas idéias.
As antigas experiências socialistas na União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas, no Leste europeu e em países da Ásia, e as que continuam na China,
no Vietnã, em Cuba, na Coréia do Norte deram-se, ou prosseguem, sob a égide do
marxismo e de seus desenvolvimentos.
Contudo, o fim do socialismo na URSS e nos países do Leste europeu, que
se coroou com a dissolução da própria URSS em 1991, mostrou as insuficiências e
os erros do que ali foi feito na economia e na política, em geral com base na
interpretação do marxismo e do leninismo existente na URSS, após a morte de
Lênin.
Lênin faleceu em 1924, mas ainda estava vivo, embora vitimado por dois
AVCs, quando surgiram em 1923, entre intelectuais marxistas, os primeiros
questionamentos do marxismo prevalecente na União Soviética. Seus autores foram
Georg Lukács, membro do Partido Comunista da Hungria, que publicou uma
coletânea de textos sob o título de História e Consciência de Classe, e Karl
Korsch, do Partido Comunista da Alemanha, que divulgou seu Marxismo e
Filosofia.
A Internacional Comunista condenou essas obras no seu V Congresso, em
1924.
Em 1925, veio a público outro trabalho de Lukács, desta vez uma crítica
ao Tratado do Materialismo Histórico do comunista russo Nicolai Bukhárin,
desenvolvimento de seu livro anterior ABC do Comunismo, escrito em 1920.
Lukács e Korsch são considerados os iniciadores do chamado
"marxismo ocidental". Nos referidos
trabalhos realçaram e criticaram
o mecanicismo na concepção materialista, a esquematização reducionista no
marxismo, o dogmatismo que sacrificava a dialética.
Os dramáticos acontecimentos de 1989 a 1991, que redundaram no fim da
União Soviética e do antigo campo socialista do Leste europeu, provocaram
grandes mudanças no mundo.
Começa pela alteração na correlação de forças em escala mundial, com os
segmentos à esquerda, socialista e comunista, postos em uma situação de grande
defensiva, uma defensiva estratégica.
Depois, pela mudança na linha de construção socialista, que se
referenciava, até então, no que se poderia chamar de modelo soviético e que
passou, depois, a seguir em linhas gerais o caminho adotado na China. O Partido
Comunista da China, depois de se inspirar no modelo soviético e após
experimentações diversas, afastou-se substancialmente da linha soviética de
construção socialista e passou a sustentar, a partir de 1978, a idéia de que,
nas condições existentes no mundo e na China, a ele caberia lutar por construir
a "etapa primária" de um "socialismo com peculiaridades
chinesas", onde coexistiriam o plano e o mercado, a propriedade pública e
outras formas de propriedade dos meios de produção, incluindo a privada e a
estrangeira, tudo sob o "predomínio da propriedade social". Era uma
originalidade. Dita diretriz propiciou o maior e mais prolongado
desenvolvimento contínuo que uma sociedade já experimentou na história humana,
levou a China à condição de segunda economia do mundo e terminou influenciando
a adoção de rotas semelhantes nas construções socialistas do Vietnã e mais
recentemente de Cuba.
Também os partidos comunistas do mundo reagiram de diferentes maneiras
ao "1991". Houve quem abrisse mão da continuidade da luta pelos
objetivos estratégicos, o socialismo e o comunismo, e abandonaram doutrina,
nome, sigla, cor, símbolo e bandeira. E houve os que reafirmaram seus objetivos
gerais, sua doutrina e seus símbolos, e procuraram atuar no curso dos
acontecimentos, com independência, procurando acumular forças para a consecução
de suas metas maiores.
Finalmente, sucedeu que o próprio marxismo, nessa fase pós-1991, viu-se
reexaminado mais a fundo e desafiado a enfrentar novos problemas, em movimento
para perseverar no objetivo socialista, revigorando a doutrina. É neste
contexto que se insere a coletânea que ora apresentamos de autoria de Duarte
Brasil Lago Pacheco Pereira.
Duarte Pereira é um marxista brasileiro forjado na luta recente que
nosso povo travou nas duras condições da clandestinidade contra a ditadura
militar implantada em 1964. Anteriormente, deixara fama de aluno brilhante na
Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Fora presidente do
Centro Acadêmico Ruy Barbosa de sua faculdade e um dos vice-presidentes da
União Nacional dos
Acompanhei a trajetória política de Duarte desde o início e até agora.
Atuamos conjuntamente por anos a fio, especialmente nas ásperas condições da
luta contra a ditadura, quando cada um de nós vivia na clandestinidade. Tivemos
muita unidade e também divergências. E nunca nos unimos ou divergimos por
questões menores.
Todos os que bem conhecem Duarte, ou mesmo os que têm a seu respeito um
conhecimento menor, sabem da firmeza de sua têmpera de luta, da decisão
inquebrantável com que mantém suas convicções, da perspicácia de suas análises,
da acuidade com que percebe as coisas relevantes. Foi ele quem, na Ação
Popular, pela primeira vez formulou e fundamentou o ponto de vista de que essa
organização deveria procurar os caminhos de se unir ao Partido Comunista do
Brasil.
Mas, se essas são características amplamente reconhecidas em Duarte, a
que mais o singulariza é outra, é o seu vigor intelectual, seu lastro teórico,
seu elevado nível cultural. Impressiona sua enorme capacidade de expor idéias.
Dentre o material teórico produzido por Duarte Pereira nos anos que se
seguiram à dissolução da URSS e até 2008, há um conjunto no qual ele questiona
interpretações conhecidas e até celebradas do marxismo, mostrando suas
limitações ou discrepâncias, quando cotejadas com os fundamentos da doutrina.
Há textos que realçam problemas da atualidade, desafios decorrentes da crise do
socialismo, da reesstruturação do capitalismo, das formas mais adequadas para
se encaminhar a luta de classes em países de tradição democrática e elevado
nível econômico, de como entender a configuração moderna do proletariado e
outras questões. A investigação histórica perpassa todos os estudos.
Como são artigos escritos em distintas oportunidades e publicados
espaçadamente em diferentes
veículos, pareceu-me oportuno juntá-los todos em um
compêndio único, pois que cada um deles, e todos em conjunto, transmitem forte
apelo à investigação e ao enfrentamento dos problemas novos com espírito aberto
e criador.
Com o consentimento do autor e o apoio da Editora Anita Garibaldi,
organizei esse Repensando o marxismo, uma coletânea de textos marxistas de
Duarte Pereira.
Um alerta precisa ser feito. Algumas informações neles contidas não
estão atualizadas, porque os textos não foram reescritos. No artigo sobre o
Tibete, por exemplo, não há referência às melhorias que a região recebeu em
período posterior, como a construção de uma audaciosa ferrovia que hoje
liga o restante do país ao Teto do Mundo, nem às mudanças ocorridas
recentemente na divisão político-administrativa da China. Os próprios termos
"proletariado" e "operariado" são usados ora como
sinônimos, ora como realidades distintas, sendo que hoje Duarte formula o
operariado industrial e agrícola como o núcleo de uma classe proletária mais
ampla.
Repensando o marxismo adverte sobre os riscos da simplificação que
depaupera a realidade, da esquematização que emprobrece a dialética, do
dogmatismo que deforma as análises e soluções. Questiona se velhos temas e
conceitos foram bem tratados no passado, quando certa visão determinista
predominou. Pensava-se, por exemplo, que o socialismo era inevitável...
Enfim, o livro que ora apresentamos perfila-se ao lado do inquieto Lênin
que, em 1914, sentindo a necessidade de aprofundar Hegel, lançou-se ao seu
estudo, após o que, como mostra Duarte, declara: “É completamente impossível
entender O Capital de Marx, e em especial seu primeiro capítulo, sem ter
estudado e entendido a fundo toda a Lógica de Hegel. Portanto, faz meio século
que nenhum marxista tem entendido Marx!”.
Na coletânea, merece atenção especial o trabalho "Lênin e a
dialética hegeliana", onde Duarte examina, em 2003,o livro de Kevin
Anderson Lênin, Hegel e o marxismo ocidental, escrito em 1995, nos Estados
Unidos.
Duarte observa que Anderson pesquisou durante 15 anos o conteúdo e as
implicações de uma obra pouco conhecida de Lênin, Cadernos Filosóficos, só
publicada na URSS depois da Segunda Guerra Mundial, cerca de 25 anos depois de
escrita, e só recentemente disponibilizada ao leitor brasileiro. Esses Cadernos
resultaram dos estudos desenvolvidos por Lênin, de setembro de 1914 a dezembro
de 1915, basicamente sobre A Ciência da Lógica de Hegel, durante seu exílio em
Berna, na Suíça.
Lênin já havia escrito, em 1908, seu Materialismo e Empiriocriticismo
do, onde fizera uma apresentação de sua concepção do materialismo e da
dialética. Pois bem. Duarte Pereira mostra, apoiando-se nas pesquisas de Kevin
Anderson, que Lênin, após seus estudos de Hegel, passou a formular de forma
diferente sua concepção da dialética. E ele, que pouco antes havia escrito o
verbete sobre Karl Marx para a Enciclopédia Granat, no curso dos estudos sobre
Hegel consultou, em janeiro de 2015, o editor da Enciclopédia sobre se ainda
havia tempo para refazer o verbete que escrevera. Não era mais possível.
Outro tema no qual Duarte é particularmente afeito é o da China.
A propósito, nos primeiros anos após o golpe de 1964, enquanto não
entrara na clandestinidade, Duarte Pereira trabalhou na revista Realidade,
lançada naquela época pela Editora Abril e que é um dos marcos proeminentes do
jornalismo brasileiro. Em sua edição de outubro de 1966, ela traz longa
matéria, pesquisada e escrita por Duarte Pacheco (como assinava na época),
intitulada "Eis a China". Em uma revista da Editora Abril, em pleno
regime ditatorial, quando o noticiário sobre a China era escasso e em geral
vazado em anticomunismo militante e primário, a matéria de Duarte foi a
primeira publicada no Brasil em órgão de grande imprensa que era diferente:
objetiva, fundada em fatos, trazendo dados concreto se simpáticos à China. Com
esses atributos, foi pioneira no Brasil.
Em Repensando o marxismo, o tema da China marca presença em três
oportunidades.
Há um texto de 2001, onde Duarte arrola seis observações sobre ela,
realçando períodos fundamentais da história desse país, acontecimentos
marcantes, vitórias memoráveis e riscos que sobrevivem.
Há um trabalho de 2006, "Mao e o socialismo", onde ele
reexamina aspectos da Revolução Cultural da China a partir das pesquisas feitas
pelo historiador britânico Roderick Macfarquhar e pelo cientista político sueco
Michael Schoenhals, publicadas no livro A última revolução de Mao, de 2006.
As pesquisas de Macfarquhar e Schoenhals duraram 30 anos, informa
Duarte. Versados na lingua chinesa, esses autores tiveram acesso a textos,
discursos, documentos e publicações só grafados em mandarim, às vezes no
original, o que muita gente que escreve sobre a China não consegue. Assim,
recompuseram o quadro conjuntural onde se deu a chamada Revolução Cultural e
apresentaram pormenores de fatos e incidentes importantes acontecidos na época.
Um deles é a morte, em 1971, de Lin Biao, então ministro da Defesa da China e
sucessor escolhido de Mao Zedong pelo IX Congresso do PCCh. Lin Biao prefaciou
o livro vermelho das Citações de Mao Zedong e foi um dos principais líderes da
Revolução Cultural. Outro evento cujos pormenores eram pouco conhecidos é a
prisão em 1976, logo após o falecimento do Mao, de quatro líderes da Revolução
Cultural, à frente dos quais Jiang Quing, a última esposa de Mao Zedong. Sobre
alguns desses episódios, anota Duarte, as informações recolhidas, na visão dos
pesquisadores, ainda que novas e importantes, não parecem esclarecer
conclusivamente os fatos.
Mas Duarte mostra como a avaliação final de Macfarquhar e Schoenhals
sobre a Revolução Cultural corresponde, basicamente, à do Partido Comunista da
China, que faz hoje um balanço eminentemente negativo dessa Revolução. O que
Duarte ressalva é que, durante os dez anos em que esses acontecimentos se
deram, de 1966 a 1976, nem tudo foi negativo, pois que, apesar do distúrbio que
predominou no período, houve crescimento econômico, "a industrialização
rural lançou raízes", "houve avanços na defesa do país",
"as pressões e investidas norte-americanas e soviéticas foram
derrotadas", "a abertura diplomática teve início", "o Partido
Comunista se reconstruiu e o regime popular sobreviveu e se firmou".
Finalmente, há o texto "A polêmica sobre o Tibete", escrito em
1999, quando se comemorava o 50º aniversário da proclamação da República
Popular da China. Com o rigor que lhe é peculiar, Duarte examina a questão da
soberania da China sobre essa região e mostra como o Tibete, há 700 anos, foi e
tem sido parte integrante do território chinês.
Nesse estudo, especial atenção merece o relato dos acontecimentos
ocorridos após a revolução chinesa de 1949 e os esforços do poder central de
Pequim para manter uma atitude harmoniosa em relação àquela parte de seu
território, enfrentando com ponderação os problemas prevalecentes. Tudo levou a
um resultado altamente simbólico, assim relatado por Duarte: "Em 1954, o
14o Dalai-Lama participou da primeira Assembléia Nacional Popular da China, que
elaborou a Constituição da República Popular, tendo sido eleito um dos
vice-presidentes do Comitê Permanente dessa Assembléia. Na ocasião, pronunciou
um discurso afirmando: ‘Os rumores de que o Partido Comunista da China e o
governo popular central arruinariam a religião no Tibete, foram refutados. O
povo tibetano tem gozado de liberdade em suas crenças religiosas.’" Assim
foi, e assim é.
Engels foi o primeiro dos grandes clássicos marxistas que salientou não
ser o marxismo um dogma,
mas um guia para a ação. E Lênin, ao acentuar ser
"a análise concreta da situação concreta a alma viva do marxismo",
chamou a atenção para as bases teóricas cardeais do marxismo: "a
dialética, a doutrina do desenvolvimento histórico multilateral e cheio de
contradições; sua ligação com as tarefas práticas da época, que mudam a cada
nova viragem da história. "
Para os marxistas, redefinir as tarefas práticas, de uma época que passa
por tantas viragens como esta nossa, só será possível se nos armarmos do método
dialético de análise, se nos afastarmos das simplificações deformadoras, se
abordarmos as questões novas com a "mente emancipada", como dizem os
chineses.
Os textos de Duarte Pereira, em Repensando o marxismo, são um chamado à
reflexão criadora sobre o mundo de hoje, sobre soluções e caminhos inovadores
que se impõem, sobre desafios, cuidados e riscos. Em um de seus textos
("Marxismo e Proletariado"), o próprio Duarte mostra-se prevenido com
ciladas que podem aparecer. Observa a necessidade de se "combater o
dogmatismo sem resvalar no ecletismo, opor-se ao revolucionarismo voluntarista
sem cair na acomodação reformista, renovar o projeto socialista preservando
seus traços constitutivos."
Repensando o marxismo é, assim, um convite para se repensar
corajosamente o marxismo e assim desenvolvê-lo.
* O título
do prefácio foi dado pelo portal Grabois e não consta do livro.
** Haroldo Lima
é membro do Comitê Central do PC do Brasil,e foi, com Duarte Pereira, um dos
fundadores da Ação Popular.
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