Luis Nassif, Jornal GGN
Se algum historiador ou cientista político quiser
um estudo de caso porque países seguidamente perdem as janelas de oportunidade
abertas pela história, debruce-se sobre o Brasil.
Durante um breve período de tempo o país conquistou
avanços inéditos. Avançou nas formas de participação popular nas políticas
públicas, definiu uma nova estratégia diplomática, inovou em políticas sociais,
industriais, na diplomacia comercial.
No período Dilma foram abandonadas várias dessas
iniciativas. Faltava à presidente dimensão política para entender o alcance
tanto da diplomacia quanto das formas de participação.
Deixou de lado, mas não desmontou as políticas
recebidas. Esta é a diferença central em relação ao interino Michel Temer.
Mesmo sendo interino, o governo Temer está
promovendo o maior desmanche de políticas públicas da história. É uma nuvem de
gafanhotos avançando sobre qualquer grama à vista, em uma demonstração tão
ostensiva de despreparo e prepotência que lembra as mais atrasadas
republiquetas latino-americanas.
A montagem de políticas públicas é trabalho de
ourivesaria. Envolve segmentos sociais e econômicos, definição de práticas,
consolidação de valores, de conceitos, abertura de canais de participação. Foi
graças a esse trabalho pertinaz que o país manteve a continuidade nas políticas
de saúde, com a apropriação da pasta por sanitaristas a partir da Constituinte;
que avançou na educação, na diplomacia, graças à continuidade de sucessivos
governos.
De repente, entra um novo governo que se aboleta no
poder e não dispõe de quadros minimamente preparados sequer para entender os
pontos centrais de cada área.
Nem o Ministério do governo Sarney conseguiu
acumular tal dose de ignorância bruta. Ministros da Educação sem um pingo de
conhecimento sobre a área; chanceler totalmente jejuno em questões
diplomáticas; Ministro da Casa Civil empenhado em destruir qualquer organização
que tenha o cheiro do governo anterior.
Desmanche na
Educação - O Fórum
Nacional de Educação (FNE) foi um enorme avanço em políticas públicas. Junta
representantes de todos os setores, de sindicatos de professores a ONGs do
setor privado. Logrou uma mobilização ampla na Conferência Nacional de Educação
de 2010, mais de 800 mil pessoas definindo um conjunto de metas em todas as
áreas da educação.
Mal chegou ao cargo, o novo Ministro da Educação
Mendonça Filho mandou demitir todos os funcionários da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) e oito da Secretaria
Executiva.
Nem se preocupou em saber para quê servia a
Secretaria, qual a relevância do FNE. De uma penada, desmontou uma estrutura
central para os avanços da educação brasileira.
Fez mais. Hoje em dia há um trabalho grandioso de
educação inclusiva, que colocou na rede pública cerca de 800 mil alunos com
alguma forma de deficiência. Mendonça acaba de demitir todo o departamento que
cuidava disso e anunciar a volta das crianças para o redil das APAEs
(Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais), cuja Federação se transformou
em um enorme sorvedouro de dinheiro público e cuja pedagogia (com exceção de
poucas APAEs, como a de São Paulo) foi condenada nos principais fóruns
pedagógicos internacionais.
Na reunião com Eduardo Barboza, o líder da
Federação, Mendonça assegurou que "agora o MEC voltará a ser de
vocês". Ao longo da última década, a Federação das APAES tornou-se o maior
sorvedouro de verbas públicas não fiscalizadas, praticando a antipedagógico do
confinamento de crianças com deficiência.
Correção: A nova Secretaria de Pessoas com
Deficiência, Ivana Farina, é defensora da educação inclusiva e técnica bastante
conceituada junto ao movimento.
Desmanche na
diplomacia - Levou anos
para que a diplomacia brasileira assumisse um protagonismo maior no cenário
global. Foram décadas de trabalho profícuo, de montagem de alianças no cipoal
sutil e sofisticado da diplomacia internacional, onde entram as ligações com os
países vizinhos, as relações com os Estados Unidos, as estratégias para
consolidar o papel do Brasil no mundo, nas instituições multilaterais, e a
maneira a aproveitar da melhor forma possível esses avanços diplomáticos.
Nos últimos anos, o país logrou colocar um
representante na OMC (Organização Mundial do Comércio), outro na UNCTAD, na
crise de 2008 liderou blocos relevantes, o G20, os países exportadores
agrícolas, os BRICs. Enfim, ganhou uma dimensão e um protagonismo que não se
via desde a Operação Panamericana, no governo JK.
Aí José Serra assume a chancelaria. Criticava-se
muito em Dilma o voluntarismo, a maneira de interferir e travar temas sobre os
quais não tinha nenhum conhecimento mais aprofundado. Perto de Serra, Dilma é
um poço de racionalidade e flexibilidade.
Para se mostrar decidido, Serra toma qualquer decisão
que passe à sua frente, mesmo sem ter a menor ideia sobre as consequências.
Faltam-lhe conhecimentos básicos sobre diplomacia e, menos ainda, sobre
estratégias diplomáticas.
Passou a tocar diplomacia de ouvido, repetindo
bordões sobre acordos bilaterais, sem entender que a própria posição do país
nos organismos multilaterais fortaleceria sua posição nas negociações
bilaterais.
Bastou o diretor-geral da OMC, Roberto Azevêdo,
chamar sua atenção para a possibilidade de atuar nas duas frentes, para Serra
pegar a borduna e bater na mesa, como um punk de periferia. Na mini reunião
ministerial da OMC, acusou a instituição de enfrentar o imobilismo, falhar em
derrubar os subsídios e barreiras sanitárias e fitossanitárias. E sinalizou que
o Brasil poderia “tomar outros caminhos”.
Serra regurgitava impropérios contra a OMC e os
jornais divulgavam o fato da China ter-se transformado no maior comprador de
carne bovina brasileira. Motivo, o extenso trabalho de derrubada das barreiras
fitossanitárias empreendido pelo governo Dilma, através da Ministra da
Agricultura Kátia Abreu. E não apenas na China, mas em todo o mundo.
Enquanto Serra submetia os demais ministros
presentes ao encontro a um esforço ingente para disfarçar o choque com tal
demonstração de ignorância, nos bastidores seus assessores diziam para os
jornalistas não levar a sério a bazófia: não haveria hipótese de desligamento
da OMC. Vai discutir subsídio agrícola onde? Na Mooca? No Ceasa?
Não apenas isso. Não conseguiu entender a
importância da África para o país, o espaço que se abre para o agronegócio e
para as construtoras brasileiras.
Desmanche na
EBC - A maneira
como o Ministro-Chefe da Casa Civil Eliseu Padilha investiu contra a EBC é a
demonstração cabal de que a lei... ora a lei.
Graças ao Ministro Dias Toffoli, a lei foi
restabelecida. E é surpreendente a maneira como foi recebido o voto de Toffoli.
Em qualquer circunstância, seria mais do que óbvio, visto que o interino
recorreu a uma Medida Provisória para intervir em uma fundação cuja autonomia é
garantida por lei.
Mas os tempos são tão bicudos, é tão precário o
conceito de segurança jurídica, que a decisão de Toffoli configurou-se um ato
de coragem e a primeira prova da independência do Supremo em relação ao governo
interino.
No final do dia, corriam os boatos que, em
represália, Padilha faria Temer encaminhar um projeto de lei propondo a
extinção da EBC.
A segurança
jurídica - A
desenvoltura com que o governo interino se lançou na missão de destruir tudo o
que lembrasse o governo de fato é a demonstração mais cabal da insegurança
jurídica do país e da anomia absoluta do Supremo.
O novo normal jurídico criou um arremedo de
civilização, um retrocesso como não se imaginaria alguns anos atrás.
1. Tira-se uma presidente
da República por questões orçamentárias, atropelando tudo o que é previsto na
Constituição.
2. Um interino assume e
desmonta toda uma estrutura pública sem ao menos se ter a certeza de que
permanecerá além dos 180 dias do interinato.
3. Procuradores e delegados
transformam os inquéritos em julgamentos políticos, selecionando as vítimas e
vazando informações antes mesmo que a defesa dos acusados seja comunicada.
4. Um Ministro do Supremo –
Gilmar Mendes – manifesta diuturnamente suas preferências políticas, decide de
acordo com suas convicções políticas, sem ao menos manter a congruência de seus
próprios votos, e nada ocorre. Não é declarado suspeito.
Não tem como evitar um profundo sentimento de
vergonha quando se observa a que foram reduzidas as instituições brasileiras.
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