Paulo Moreira Leite, Brasil 247
Os desafios e impasses desta difícil etapa de
nossa história política colocaram nas mãos do ministro Ricardo
Lewandowski uma decisão verdadeiramente crucial para o destino da
democracia brasileira.
Encarregado, pela Constituição, de assumir a
presidência do julgamento de Dilma Rousseff pelo Senado Federal, caberá a
Lewandowski assegurar o respeito ao pleno direito de defesa, princípio
fundamental que serve de linha divisória entre o Estado Democrático de Direito
e as lamentáveis
versões de Estado de Exceção construídas ao longo da história
humana, numa sequencia deprimente de excrescências político-jurídicas que nem
vale a pena mencionar aqui.
Até há pouco celebrado como abrigo de uma das mais
recentes e progressistas democracias construídas com sacrifícios reconhecidos
na segunda metade do século XX, o Brasil corre o risco imediato de
transformar-se num vexame político internacional, uma anacrônica república de
bananeira, regressiva e atrasada. Tudo vai depender do tratamento que for
conferido ao mandato de uma presidente que recebeu 54,5 milhões de votos em
outubro de 2014 e agora corre o risco de ser afastada definitivamente do
seu posto em função de uma manobra de bastidores, um arranjo sórdido às costas
do eleitorado, para dar posse a um grupo de aventureiros sem lastro popular e
princípios que se modificam ao sabor das próprias conveniências.
Não cabe ao presidente do STF, naturalmente,
definir se Dilma deve ser considerada culpada das acusações que lhe tem sido
feitas -- as mesmas que, se forem levadas a sério, já deveriam ter sido
partilhadas pelo sucessor ora interino, e assim julgado na mesma hora e lugar.
No momento devido, a decisão sobre Dilma caberá aos 81 senadores, diz a Lei
Maior. Também será partilhada, indiretamente, pelos mais de 100 milhões de
eleitores que, até o momento final, terão o direito inalienável de tentar
influenciar no resultado, como é natural em toda democracia digna desse nome.
Cabe ao presidente Ricardo Lewandowski assegurar
que se cumpra o ritual capaz de assegurar uma decisão onde as partes tenham
direito ao contraditório, no qual o espetáculo midiático não venha
a substituir a indispensável serenidade para uma decisão decente, fundamentada
em fatos e provas -- e não num circo de propaganda e pirotecnia.
Esta é, na verdade, a ameaça real sobre o
julgamento de Dilma: o risco de uma sabotagem deliberada da democracia. Sem
provas, seus adversários enfrentam o risco de não reunir votos para levar o
plano até o fim. Por isso têm pressa, mesmo num plenário de um numeroso plantel
de farrapos morais. Se a legislação prevê o prazo máximo de 180 dias para o
julgamento, uma maioria conjuntural formada na Comissão Especial do Impeachment
acaba de aprovar um prazo ridículo de 60 dias. Se a previsão era dar palavra a
40 testemunhas, o que se pretende agora é reduzir os depoimentos para 16. Não
vamos nos enganar.
Aquilo que pode parecer economia de tempo na
verdade é uma forma de supressão de direitos. Tenta-se impedir o debate, o
esclarecimento, a dúvida. Não é difícil entender por que. Assistimos a uma
corrida contra o tempo, a uma tentativa de sufoco, um esforço para proteger a
versão do cirquinho midiático, na qual cada vez menos gente acredita, como você
comprova ao falar com seu vizinho, perguntar no ônibus, discutir no almoço --
sem falar na mídia séria, que atende pelo nome de New York Times, The Guardian,
El País, Le Monde, Spiegel e, infelizmente, sinal dos tempos, é mercadoria mais
fácil de encontrar em língua estrangeira. A verdadeira causa da pressa é o medo
de uma avalanche, o desmascaramento, revelador como os grampos em que os
espertalhões de ar moralista durante o dia confabulam à noite para
safara-se de crimes e responsabilidades.
Basta olhar para as manifestações que servem de
sinal para a vontade simples das pessoas do povo, que ninguém convoca, nem
dirige -- apenas se manifesta. É útil perguntar às mulheres qual a causa de seu
descontentamento. Aos artistas, por que estão indignados. Aos jovens,
particularmente estudantes, por que se revoltam. Aos negros, por que estão
inquietos. Aos trabalhadores, por que voltaram a se mexer. Aos funcionários,
por que promovem insurreições para livrar-se de ministros ineptos.
Não estamos falando de uma denúncia vulgar contra
uma acusada comum, mas da principal nação da América do Sul, que hospeda a
sétima economia do mundo, com o poder de gerar influencias -- saudáveis ou
nocivas -- toda vez se movimenta, numa direção ou outra. O mais recente ciclo
de ditaduras sul-americanas, na década de 1960, não teve início no Brasil, mas
numa quartelada contra um governo eleito do Peru. Mas foi a partir da tenebrosa
experiência brasileira, a segunda pela ordem cronológica, que a onda se
ampliou, para se tornar um pesadelo de duas décadas, decorado por cadáveres sem
conta.
Basta olhar para o mapa de 2016 para
reconhecer que o mesmo jogo de dominó começa a ruir, com a infinita dor de toda
tragédia que atinge a vontade das maiorias. A reconstrução de cada passo da
crise que colocou as instituições brasileiras a beira de um abismo aponta para
várias responsabilidades. O papel da oposição, incapaz de aceitar uma derrota nas
urnas, é essencial. Também não se pode diminuir a atuação do próprio governo
Dilma, incapaz de oferecer respostas coerentes ao longo do segundo mandato.
Como negar a atuação nefasta de um Congresso que entregou-se ao comanda de uma
liderança como a do suíço Eduardo Cunha?
Mas é justamente em situações desse tipo, quando
incompetências se somam e se multiplicam, que a Justiça pode mostrar seu lugar
e seu papel. É muito razoável esperar que atue assim, numa postura que
nada tem a ver com heroísmo, mas com a capacidade de, humildemente, reconhecer
as próprias responsabilidades e assumir um lugar que, com frequência, está
chamado a desempenhar um papel em que se mostra insubstituível.
Há dez anos no Supremo, com um diploma pela Escola
de Sociologia e Política além de todas as graduações e doutorados de Direito,
Lewandowski foi colocado, aqui e agora, diante do olhar sempre misterioso da
História de um povo. Não é novato na experiência. No início do julgamento
da AP
470, ocorrido logo após sua entrada no STF, cunhou uma frase inesquecível, ao
dizer numa conversa pelo telefone que os jornais e revistas haviam colocado
"uma faca no pescoço" de juízes que examinavam o caso.
Capaz de assinar sentenças duríssimas, não temeu
confrontar-se com Joaquim Barbosa quando julgou necessário. Denunciou a
aprovação de penas agravadas artificialmente e demonstrou seu apreço pelo
princípio de todos são inocentes até que se prove o contrário ao aceitar o
pedido de embargos formulados pela defesa, numa conjuntura em que era mais
cômodo engrossar o coro que transforma cada recurso em chicana e manobra
indecorosa pela impunidade.
Num país às voltas com medidas saneadoras da vida
pública, Lewandowski foi ministro que soube encaminhar, em demorada decisão no
STF, a proibição de contribuições eleitorais de empresas, matéria prima da
corrupção política.
Quando faltam dois meses para o fim de seu mandato
na presidência do STF, Lewandowski enfrenta a situação que irá definir
seu lugar na vida dos brasileiros. As tristezas e dificuldades do Brasil de
2016 lhe deram a responsabilidade de escolher entre civilização e barbárie. É
uma grande chance
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