Em 2014 foram protocolados 47.646 estupros
por todo o Brasil, além de cinco mil tentativas. Os registros
policiais apontam que a cada onze minutos uma mulher foi estuprada.
No mesmo ano encontravam-se no sistema carcerário 14.246 presos
por “crime contra a dignidade sexual”, em que se
encaixam, dentre outros, o estupro, atentado violento ao pudor, estupro de
vulnerável e corrupção de menores.
Este número, contudo, refere-se à quantidade total de condenados
presos, não apenas aos casos de 2014, e constitui 5% dos presos por crimes
tentados ou consumados. O que acontece entre o boletim de ocorrência e a
prisão?
Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, explica que o preparo da polícia para acolher as vítimas e sua relação
de confiança com a sociedade são fundamentais para combater a subnotificação de
crimes e a impunidade. Leia destaques da entrevista a seguir.
CartaCapital: Por que o número de
condenados por estupro é tão baixo se comparado ao número de casos registrados,
como mostra o estudo de 2015 do FBSP?
Samira Bueno: As principais
dificuldades em relação a esse crime são a produção de provas, o medo que as
vítimas têm em denunciar porque, em geral, conhecem seus agressores, o que
torna a denúncia complexa.
O que acontece entre esse número, que nos baliza a pensar políticas públicas, e o número real?
Pesquisas internacionais mostram que de 30% a 35% dos crimes são de fato
registrados. No Brasil, são 7,5%. E o IPEA mostra que o número real de estupros
ocorridos no ano passado é superior a meio milhão.
A violência faz parte do cotidiano da mulher brasileira,
possivelmente a cada um minuto uma mulher é vítima de violência sexual. E a maior parte dos
crimes acontece dentro de casa. Quem abusa dessas jovens, porque na maioria dos
casos são menores de idade, é o pai, o padrasto, o vizinho.
CC: Em que momento do
processo entre a notificação à polícia e o julgamento esse número sofre maior
queda? Por quê?
SB: A pesquisa mais recente relacionada a homicídio, que é um crime
contra a vida, o mais grave, mostra que a média no Brasil entre o momento do
cometimento do crime e a condenação é de 7 anos. Isso em um crime cujas provas
são mais fáceis de apurar, relativamente. Desconheço estudos sobre estupro, mas
o número deve ser baixíssimo.
Há um problema muito anterior: a relação de confiança entre
polícia e sociedade. À medida em que as pessoas confiam menos na polícia, elas
se sentem menos confortáveis na hora de registrar um crime.
A cultura do estupro dificulta que aquele
policial, o operador ali na ponta, compreenda aquele caso como um crime. Além
disso, ela é a causa pela qual boa parte da impunidade nos crimes sexuais
começa muito antes de chegar à Justiça. A vítima precisa, antes de tudo, provar
que é vítima.
CC: Os policiais recebem
treinamento adequado para lidar com as vítimas e os desdobramentos desse tipo
de crime?
SB: Depende. Porque, como as polícias respondem ao executivo
estadual, cada uma das polícias tem seu protocolo, seus esquemas de formação.
Temos uma polícia que inspira desconfiança da população, e isso é um dado que
tem como efeito prático a subnotificação de todos os crimes.
Nossa taxa de roubo corresponde ao todo? Não. Apenas um terço é
notificado. Os que são mais notificados são homicídios, que têm um corpo que
exige investigação, os roubos e furtos de veículos, por causa dos seguros.
Um crime contra a vida, que teoricamente fornece mais elementos
para a investigação, tem uma taxa de 8% de casos solucionados. Isso no caso de
um homicídio que deixa tantos vestígios, que tem necessariamente a perícia no
corpo, que tem mais elementos, que muitas vezes acontece na rua, então tem
alguma filmagem, testemunhas. Não acontece dentro de casa, como um estupro
muitas vezes acontece. Se nessa situação a taxa é tão baixa, que dirá dos
crimes que ocorrem intramuros.
Quando a gente fala por que é importante um treinamento
diferenciado para a polícia, é porque os policiais têm que entender que aquela
pessoa é um sujeito de direitos que sofreu uma violência. Que aquela mulher
agredida precisa de todo o cuidado necessário.
Ela não precisa passar novamente por uma revitimização, porque
muitas vezes ela revive o trauma quando vai dar o depoimento e o profissional
não sabe lidar com ela. E aí ela desiste, vai embora sem dar queixa. Ou ela vai
ser vítima novamente e não vai voltar na delegacia.
Esse tipo de atendimento é fundamental porque a polícia é
necessariamente a porta de entrada da vítima no sistema da justiça criminal.
Elas têm três opções: podem ficar dentro de casa convivendo com a violência, ir a um hospital e ter atendimento para
evitar uma gravidez e uma doença venérea e ainda assim evitar a delegacia, e
elas podem tentar fazer o registro da queixa.
Quando você sofre todo tipo de constrangimento na hora de tentar
registrar uma ocorrência, você acaba desistindo. E se você souber de alguém que
está sendo vítima de alguma violência, vai dizer a ela que não
adianta ir à delegacia, não adianta falar com a polícia.
Se não houver sensibilidade desde a porta de entrada, nunca vamos
resolver o problema da impunidade. Se a polícia não faz uma investigação bem
feita, não dá todo o atendimento necessário pra a vítima e compreende aquilo
como um crime, se ela questiona até se é um crime, de forma alguma o judiciário
vai dar algum tipo de caminho diferente.
É um erro falar da impunidade como se fosse um problema só da
justiça. Falar de impunidade nos crimes sexuais é falar já do primeiro
atendimento que essa vítima tem nos equipamentos policiais.
CC: Houve recentemente
iniciativas do Estado direcionadas a esse problema?
SB: O Estado brasileiro hoje está na contramão. Quando vemos um
congresso cogitando acabar com a discussão sobre gênero na escola, isso é um retrocesso. Há
um projeto de lei que quer tornar ainda mais difícil para a vítima fazer um
aborto em caso de estupro. Ele cria uma série de etapas que dificultam esse
direito, como a exigência de um boletim de ocorrência. E nós sabemos o que
acontece na delegacia.
A nova secretária de políticas para as
mulheres assumiu publicamente que é contra o aborto mesmo em casos de estupro.
Estão pensando em restringir ainda mais os direitos da mulher em vez de cuidar
dela, em dificultar ainda mais sua vida após sofrer um crime como esse.
É preciso criar políticas que repensem a formação de nossas
crianças e jovens, gerando um processo de educação que reforce a importância da
equidade de gênero.
CC: Como essa
estatística se relaciona com a falta de representatividade da mulher na
política, algo que se tornou mais flagrante com a posse do presidente interino
Michel Temer?
SB: A desvalorização do papel da mulher enquanto ator público,
sujeito político, é evidente quando você olha os ministros de Temer. A resposta a essa
violência não virá de um grupo de homens, que não conseguem entender a dimensão
do problema.
O Estado precisa aprender a articular melhor as secretarias de mulheres, direitos humanos e de
segurança pública. Todos esses atores que tratam das questões de gênero a
partir de diferentes perspectivas podem concentrar esforços para pensar
protocolos de atendimento que formariam profissionais de segurança em todo o
país e não só nas capitais.
Pensando em legislação, avançamos bastante nos últimos 10 anos.
Estupro é crime hediondo e a lei mudou em 2009, então ato libidinoso e outras
violações passaram a ser enquadrados como estupro. Em 2006, tivemos avanços nas
leis de combate à violência doméstica. Foi onde mais
avançamos. Só que ainda não conseguimos evitar que uma mulher seja espancada
pelo marido, assassinada pelo namorado, que uma menina seja estuprada por 33 homens.
A questão é que podemos ter as melhores leis do mundo, mas se os
equipamento na ponta, as investigações, o papel da polícia no primeiro
atendimento a essa vítima, se a ação da polícia com a assistência social e os equipamentos de saúde não funcionarem,
nunca vamos punir os agressores.
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