Sonhos do passado e do presente
Portal Vermelho
A luta dos
adolescentes e jovens adultos por um mundo melhor e mais justo - e os traumas
que podem ocorrer a partir dessa ousadia - são o pano de fundo abordado pelo
jornalista e escritor Urariano Mota em seu novo livro, A longa duração da juventude.
A obra, à venda no site Amazon, é um retorno a memórias do pós-ditadura,
mas, ao mesmo tempo, traz uma ponte para o futuro ao relacionar a militância de
esquerda dos anos 1960 ao protesto dos estudantes brasileiros na atualidade.
“Tenho que contar essa história, senão isso vai ficar perdido. Certas coisas
não vão ser ditas se você não falar”, afirma Urariano, colaborador frequente da
seção de Opinião do Diario.
O autor dos romances Os corações
futuristas, Soledad no Recife e O filho renegado de Deus, além de Dicionário amoroso do Recife, pontua que
o romance, segundo ele o mais ambicioso de sua trajetória, foi detonado a
partir da morte de um amigo querido, o jornalista e ex-militante comunista
Marco Albertim. “A primeira coisa a destacar é a seguinte: eu não procurei
escrever somente sobre a ditadura. Quando eu estava indo visitar pensões onde
morei, vi uma passeata de adolescentes protestando com bandeiras por uma
educação melhor. Foi quando me ocorreu o fato de que havia uma duração mais
longa da juventude. Quem esteve na clandestinidade e foi ao limite da entrega
da propria vida está nesses jovens das ocupações de escolas e universidades”.
A partir desta sensação de eterno retorno, Urariano traz uma apropriação
e reflexão muito pessoal sobre passagens vividas por quem ainda começava a vida
na época da ditadura, assim como ele. “A trama do romance, escrito em primeira
pessoa, começa a partir de um personagem que encontra o narrador, de posse de
um LP de Ella Fitzgerald, em frente ao Cinema São Luiz. A militância desses
jovens do pós-1964, assim como a vida sexual e afetiva deles, são abordadas no
livro. Ao longo da obra, ele procura retomar essas vidas, vai de novo aos
abrigos onde morou e percebe uma relação com os jovens de hoje”. Personagens
presentes em outros títulos, como a paraguaia Soledad Barrett, voltam a ser
citados com novos fatos de sua vida. A filha única dela, Ñaisandy Barrett, também
entra no romance como personagem”.
A intensidade dessas experiências que borram e transbordam os limites
entre ficção e memória são, segundo Urariano, motor para sua criação. O impacto
da história de Soledad Barrett, por exemplo, morta enquanto estava grávida pelo
próprio marido, o Cabo Anselmo, é um dos exemplos. “Achava necessário tirar um
trauma de juventude. Quando se escreve um romance, ele é um fruto de sua
experiência de vida. No momento da narração, descubro verdades desconhecidas
para mim. O escritor irlandês Bernard Shaw dizia assim: ‘a melhor forma de
mentir é contar a verdade’. Não percebemos o quanto a vida é curta, mas ela é
uma coisa muito séria. Não podemos apenas brincar de viver”.
Trecho
I wonder why. Eu não sei por quê, não entendo qualquer motivo ou razão,
inclusive a mais absurda, eu não sei por que acabo de comprar um disco de Ella
Fitzgerald, o long-play Ella, de 1969. Eu não tenho nem mesmo um toca-discos
para ouvi-la. Mas que felicidade dá nos lábios, feito um menino com um
chocolate que não poderá comer, mas ainda assim feliz pelo cheiro e textura do
chocolate. É inexplicável que eu esteja feliz quando encontro Luiz do Carmo em
frente ao Cine São Luiz, que ao me ver exibindo a capa de Ella, pergunta:
- Você tem vitrola para ouvir o disco?
- Eu não tenho, mas quando tiver uma, já tenho Ella Fitzgerald.
Na hora, estamos com 19 anos, não temos ainda a maturidade da expressão
verbal para o sentimento, apenas possuímos uma timidez que atrapalha até o
pensamento em silêncio. O que não disse ali é isto: quero ter Ella comigo,
acariciar a sua capa (que pobreza, meu Deus, dói até a lembrança neste
instante). Quero antegozar a sua voz, a doçura que apenas ouvi por segundos e
me derrubou num encanto, lá na Aky Discos. Quero prelibar a sua canção,
encontrando-a junto a meu peito. Por quê, I wonder why? Porque, uma
simplificação diria, quando o detalhe material do toca-discos chegar, eu já
estarei com o disco ideal para o suporte da mercadoria. Ou num paradoxo, se o
toca-discos é inacessível, eu tenho o disco de Ella, que não posso ouvir. Mas
imaginá-lo, posso. Então acaricio feliz o potencial do que virá, ou viria, ou
nunca, que importa, tenho Ella com a mesma certeza do apostador que vai à loja
de roupas antes comprar um bilhete na loteria.
Fonte: Diário de Pernambuco
Fonte: Diário de Pernambuco
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