O arreganho da “pior ditadura”
Haroldo
Lima
Foi Ruy Barbosa, o patrono do Senado brasileiro, o
grande jurista do início da República , quem fez essa advertência: “A pior
ditadura é a do Judiciário. Contra ela não há a quem recorrer”.
Pelo menos desde 2015, observa-se no país um
contínuo crescimento de forças anti-democráticas. Com pretextos variados,
direitos democráticos vem sendo solapados. O devido processo legal – pedra de
toque de um regime democrático – que define em que condições um cidadão pode
ser preso, é aviltado; não se respeita o que a Constituição garante – “a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas” – tudo é profanado;
não se exige prova de crime, basta a denúncia de um criminoso; o flagrante não
é um fato, é uma interpretação; a tortura é ajustada aos tempos modernos: ao
invés de choque elétrico, arrancam-se confissões abatendo a moral da vítima,
através da prisão sem culpa formada, por tempo indeterminado, com ameaças à sua
família e ao fim de seus negócios; juiz não fala apenas nos autos, nem
procurador apenas investiga, promovem-se na mídia.
Tudo isso foi surgindo à margem do Estado de
direito, e logo foi crescendo em tamanho e arrogância. O que parecia
excepcional foi ficando permanente, e um Estado de exceção foi tomando corpo
dentro e em detrimento do Estado de direito democrático. A grande mídia
notabilizou-se como cúmplice dessas deformações. Os Tribunais iam se omitindo.
A justificativa geral que se propalava para tudo
isso era a do combate à corrupção. Tratava-se de “pegar ladrão”. Esse era o
pretexto básico.
Nosso povo, que não foi politicamente bem educado
nesses anos de governos de centro-esquerda, não percebe que essa forma de
combater a corrupção é falsa, que prender um, dois, cinqüenta ladrões, ainda
que grandes, não tem nada a ver com fechar dezenas de empresas, acabar com
milhões de empregos, enfraquecer o país e abrir suas portas ao capital
estrangeiro.
Os homens da Lava Jato, bafejados pela grande
mídia, prepararam a grande e espetacular notícia divulgada pelos canais
globais: aqui, no Brasil, não dá para se ter grande empresa, que faz grandes
obras, porque o empresário brasileiro é corrupto; assim, botemos essa turma na
cadeia, acabemos com suas empresas, e recebamos de braços abertos, o empresário
honesto, o estrangeiro!
Diversos países combatem a corrupção, mas sem
destruir empresas, sem desempregar sua mão de obra. Hoje, fabricar armas
químicas e bacteriológicas é condenado, é crime de guerra. Mas as fábricas que
as produziram até há bem pouco tempo, estão aí, fortalecidas e prestigiadas,
nos Estados Unidos, na Alemanha, no Japão. Se algum criminoso foi identificado,
foi retirado, e as fábricas nada sofreram.
Aqui não. Para pegar alguns ladrões, grandes que
sejam, a Lava Jato arrebentou com nossa industria, jogou milhões no desemprego,
enfraqueceu a Nação.
Naturalmente que esses ladrões, devidamente
identificados,deveriam ser apanhados e punidos, exemplarmente, mas sem quebra
da base técnica que sustentava milhões de empregos.
Na medida em que o Estado democrático de direito ia
sendo desmoralizado e negado, e ao tempo em que crescia o Estado de exceção,
alguns setores perdiam força, enquanto outros se projetavam.
Perdia força, em primeiro lugar o povo, ludibriado
por uma campanha falsamente moralista, que para prender uns corruptos, tirava o
emprego, a saúde, a educação e as garantias do povo em geral; enfraqueceu-se a
chamada classe política, mesmo a de centro e até a de direita; debilitou-se o
capital nacional, desgastado e desmoralizado.
Ganharam força setores de órgãos como o Ministério Público Federal, a Polícia Federal, o Parlamento e o Judiciário. A grande mídia coordena-se com todo esse pessoal.
Ganharam força setores de órgãos como o Ministério Público Federal, a Polícia Federal, o Parlamento e o Judiciário. A grande mídia coordena-se com todo esse pessoal.
O impeachment e o governo Temer foram etapas desse
processo. Mas as facções de ultra direita, ao se sentirem cada vez mais
pujantes, ao conseguirem intimidar e neutralizar o STF e ao verem suas ações
arbitrárias cada vez mais elogiadas, podem tentar avanços maiores, podem achar
que o momento é para uma direitização maior, para uma fascistização do país,
para um entreguismo mais desenvolto. Em suma paira sobre o Brasil o risco de
uma marcha para uma ultra direita.
O que aconteceu ontem com a votação na Câmara é um
sinal de deterioração séria de nossas instituições.
Depois de prolongada sessão que varou a madrugada
do dia 30,a Câmara dos Deputados aprovou o projeto chamado de “10 Medidas
contra a Corrupção”.
Independente do mérito das medidas adotadas, o
processo seguiu um ritual normal: da proposição apresentada, até a votação
final, tudo normal.
Pois não é que, depois de tudo isso, um funcionário
público, chamado Rodrigo Janot, pago regiamente para defender a lei e a
democracia, do alto do cargo de Procurador Geral da República que exerce, vem a
público dizer que ele, ou melhor, que o “Ministério Público Brasileiro não
apóia o texto” aprovado?
Mais que isso, uma turma do Ministério Público,
ligada à Operação Lava Jato, resolve afrontar escancaradamente o Legislativo, e
portanto o Estado de Direito democrático, ameaçando renúncia coletiva de seus
afazeres, se o Congresso não mudar o que já foi aprovado na Câmara.
A afronta é aberta . Sinal de que o que era
tendência, já está mostrando a cara, o que crescia, já arreganha dentes
ameaçadores ao Estado de direito.
Na ditadura militar, sabíamos que nem todos os
militares estavam com ela comprometidos. Mas os que assim estavam, eram
ousados, atrevidos, e nós os chamávamos de membros da “comunidade de
informações”. Hoje, claro, nem todos os juízes, nem todos os procuradores, nem
todos os policiais federais fazem parte do Estado de exceção que se movimenta.
À falta de nome melhor, os que fazem parte desse Estado podem ser identificados
como membros da “comunidade da Lava Jato”
O caráter grotesco da reação do Ministério Público ao resultado da votação na Câmara faz-nos lembrar o personagem Eremildo, o idiota, criado pelo Elio Gaspari e que, inocentemente, talvez perguntasse à “comunidade da Lava Jato”: mas, para aprovar uma lei, a Câmara precisa de seu apoio prévio?
O caráter grotesco da reação do Ministério Público ao resultado da votação na Câmara faz-nos lembrar o personagem Eremildo, o idiota, criado pelo Elio Gaspari e que, inocentemente, talvez perguntasse à “comunidade da Lava Jato”: mas, para aprovar uma lei, a Câmara precisa de seu apoio prévio?
Faz-nos lembrar também do Trump, o presidente
eleito dos EUA, que perguntado em um debate se respeitaria o resultado das
eleições, insolentemente sapecou: “só se eu ganhar”.
Um ministro do STF, que não sendo da “comunidade da
Lava Jato”, tem feito judiciosas e corajosas reflexões, de março para cá, sobre
o quadro que se está criando no país, é o Ministro Marco Aurélio.
Em março, resgatou a advertência do Ruy acima
lembrada: “A pior ditadura é a do Judiciário.”
Logo depois, mostrou-se escandalizado com o abuso
de poder exibido pelo Juiz Sérgio Moro decidindo pela condução coercitiva de
Lula. E disse: “Condução coercitiva pressupõe recusa a uma intimação prévia.”
“Até o regime de exceção observava essa norma”.
Sobre as
tendências absurdas a privilégios de casta para a magistratura, agregou, em
março Marco Aurélio: “As cortes superiores não devem ser protegidas sob o manto
da intangibilidade”; “Não somos semideuses, somos apenas operadores do
Direito”; “A despeito de estar fragilizado, é o Congresso que legisla. Se o
Supremo não exercer auto-contenção, onde vamos parar?” “O país está desprovido
de segurança jurídica para a quadra delicada que atravessa”.
E não é só o Supremo que precisa ser contido dessa
sua propensão legiferante, mas também o Ministério Público, que está posando de
semi-deus da ditadura do Judiciário que emerge. O Procurador Deltan Dallagnol,
um dos chefes da “comunidade da Lava Jato”, esteve há pouco na Câmara, como
porta-voz de um pleito absolutamente despropositado: retirar os Procuradores e
o Juízes da lei que iria coibir o abuso de autoridade!
Era de se supor que Juízes e Procuradores, ciosos
da idéia de que “ninguém está imune à lei”, procurassem o Parlamento para dizer
mais ou menos o seguinte: “se as autoridades do país vão ser fiscalizadas, na
forma da lei, queremos ser tratados como as demais autoridades, pois não somos
uma casta, não somos diferentes, não somos imunes à lei”. Mas, qual não foi a
surpresa de todos quando se soube que o Procurador Deltan foi ao Parlamento
pedir para que os Juízes e Procuradores não fossem colocados na lei, porque se
sentiriam ameaçados!!! Quer dizer, todos têm que ficar nos limites da lei, e
isto não é ameaça; mas Juízes e Procuradores terem que respeitar, a lei é uma
ameaça?
As forças vivas da Nação, políticos democratas de
uma maneira geral, trabalhadores, estudantes, intelectuais, empresários, todos
devem se unir, inclusive com Juízes, Procuradores e Policiais Federais,
defensores do Estado de direito democrático, para repelir o marcha da “pior
ditadura” que ameaça o país.
Haroldo
Lima – é membro da Comissão Política Nacional do Comitê Central do Partido
Comunista do Brasil.
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