Saudades e ruídos no adeus a Marisa Letícia
Haroldo Lima, no Blog do Renato
As circunstâncias que levaram Marisa Letícia a um
AVC e acontecimentos ocorridos após sua internação no Hospital Sírio Libanês e
depois de sua morte, leva-nos a constatar o caráter odiento de um tipo de
cidadão que está se manifestando hoje no Brasil, um cidadão desumanizado.
Marisa Letícia foi operária aos 13 anos de idade
na fábrica Dulcora, em São Bernardo. Na militância sindical, fez curso de
Política dado pela Pastoral Operária de seu município. Esteve na criação do PT.
Casou-se com Lula e foi sua companheira por 43 anos. Era uma pessoa doce e
afável, delicada e cortês, mãe de família pressurosa, e era também uma mulher
de fibra, de opiniões e de luta. Por que sua agonia final, que a todos
entristeceu, provocou grosseria e estupidez em alguns? Isto tem a ver com a
forma grotesca com que se tem combatido vitórias sociais conquistadas há pouco
em nosso país.
A partir de 2003, com Lula na presidência,
promoveu-se no Brasil a maior inclusão social de sua história, com a
retirada da extrema pobreza de cerca de 40 milhões de brasileiros.
Este fato despertou a ira de muitos privilegiados.
Camadas médias da população também ficaram inconformadas por terem que conviver
com ex-pobres em aviões e universidades. Os muito ricos, como banqueiros
e empresários da informação que, com a complacência do Lula, ficaram mais
ricos, acharam necessário por fim a essa experiência de governos populares, que
já estava demorando muito.
Uma onda contrária a esse tipo de governo se
estruturou e cresceu no país. Usou como pretexto a luta contra corrupção,
devidamente manipulada. Alguns corruptos são combatidos com virulência, outros
acobertados.
Um Poder paralelo foi sendo constituído, com
setores do Judiciário, do Ministério Público, da Polícia Federal. Uma base
parlamentar reacionária dava-lhe apoio e a grande mídia incumbia-se de fazer
explodir manchetes sensacionalistas. Tudo que desprestigiasse o modelo de
inclusão social do Lula deveria ser reprimido, legalmente ou não. Delações
começaram a ser premiadas e informações de bandidos passaram a ter o estatuto
de coisa séria. Abusos de autoridades proliferam. E o Poder paralelo foi se
conformando no embrião de um Estado de exceção.
O Supremo Tribunal Federal foi sendo capturado.
Exibe “sobriedade” e “erudição”, mas não contem o arbítrio que se alastra.
Presidiu a sessão do Congresso que cassou o mandato de uma presidenta que não
cometera crime de responsabilidade!! Empenhou-se em legitimar um governo que
prima por ter em seu primeiro escalão alguns dos mais conhecidos corruptos do
país.
Toda essa movimentação visa um objetivo maior,
simbólico, o de botar Lula na cadeia, para desmoralizar a política de inclusão
que ele representa.
Divulgar, durante anos, que Lula era o chefe de
uma quadrilha foi fácil para o Estado de exceção e sua mídia cativa.
Difícil era mostrar as provas da corrupção de Lula, as propriedades ou o
dinheiro que o “chefe” amealhou. O Estado de exceção retorcia-se à cata dessas
“provas”, e nada conseguiu.
Mas a frenética campanha de difamação contra Lula
prosseguia, atingindo em cheio sua companheira Marisa Letícia. A certa altura,
quiseram levar Lula à força para Curitiba. Conduziram-no preso para o aeroporto
de Congonhas, em São Paulo, onde pegaria um avião. Populares viram Lula preso e
entraram no aeroporto. Houve tensão. A Aeronáutica resolveu a parada: nenhum
avião com Lula a bordo decolaria.
Apesar de tudo, a Lava Jato abriu cinco ações
penais contra Lula, com Marisa Letícia incluída em três delas. A D.
Marisa era submetida a um stress permanente, prolongado e agudo.
E de repente o Estado de exceção encontra a “prova
do crime”, a fortuna que o “chefe da quadrilha” angariou: um apartamento de
inferior qualidade no Guarujá e um suposto envolvimento em um sítio em Atibaia.
Apesar dos documentos das propriedades não terem os nomes nem de
Lula nem de Marisa, seus nomes foram repetidos à exaustão como prováveis donos
do “triplex de Guarujá”.
A 18 de agosto de 2016, finalmente, a Polícia
Federal conclui suas investigações sobre o apartamento e apresenta seu
Relatório: nem Lula nem Marisa tinham nada com o tal triplex.
O Jornal Nacional, a Veja e o resto da grande
mídia que durante meses alardearam que Lula e Marisa eram os donos do
apartamento, não deram nenhum destaque ao desmentido da Polícia Federal. Em 27
de janeiro último, um membro do Estado de exceção, o delegado da Polícia
Federal Igor Romário de Paula, declarou à imprensa que “em um prazo de até dois
meses” pode haver a prisão de Lula. Vê-se que o foco continua claro e a
perseguição é grande.
O AVC de Marisa Letícia ocorreu nessas
circunstâncias de enorme assédio moral, de esgarçamento emocional prolongado e
cruel. Não se pode dizer com segurança que foram esses os fatores que
desencadearam o AVC da D. Marisa, mas não há dúvida que esta tensão elevada e
demorada contribuiu significativamente para o AVC da D. Marisa.
Interna-se então a D. Marisa no Sírio Libanês.
Ocorrem numerosas manifestações de condolência, de apreensão, de solidariedade,
como era de se esperar. Mas aparecem também algumas reações de inusitada
estupidez, proclamações de alegria com a gravidade da doença da D. Marisa,
compartilhadas nas redes sociais, expressando desejo de que ela não se
recuperasse. Até uma médica do Hospital, criminosamente colocou nas redes, como
boas notícias, informações sigilosas sobre a gravidade da saúde de D.
Marisa.
Ocorrida a morte, naturalmente o
sentimento geral foi de tristeza. Mas apareceram manifestações de regozijo,
agressivas, inteiramente estranhas a um comportamento civilizado.
Pergunta-se: que tem levado parcelas de nossa
população a terem atitudes tão desastradas?
O velho Marx dizia que “as circunstâncias fazem os
homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias” (A Ideologia
Alemã). O grande pensador nos ensinou que foi através do trabalho que
o homem se humanizou, distanciando-se de sua animalidade e desenvolvendo
uma série de faculdades novas, chamadas humanas. Ele transforma sua natureza em
natureza humanizada.
Entretanto, as circunstâncias do capitalismo – a
busca desenfreada do lucro, a competição, a exploração do trabalho alheio –
contribuem para desenvolver o espírito de competição, o individualismo que
coloca como pressuposto da vitória a derrota do outro. Se uma situação deste
tipo se conjuga com uma pregação de ódio, de vingança, de agressividade, de
desrespeito ao próximo; se há um incentivo a métodos desleais de relações humanas,
em que se define primeiro o “criminoso” a ser extirpado e depois vai-se atrás
do “crime”; se humilhar é expediente necessário para se conseguir uma vitória
política, se é assim que as coisas funcionam, então crescem bastante os fatores
da desumanização, da incivilidade e da barbárie. Episódios canhestros que
vieram à tona durante a agonia de D. Marisa mostram já estar presente entre nós
gente desumanizada.
A luta por superar o capitalismo, ou pelo menos,
seus traços “selvagens”, relaciona-se com o objetivo da humanização do cidadão.
Como essa luta é de longo prazo, faz-se necessário, para ir-se humanizando a
pessoa, adotar e incentivar meios humanizadores entre os quais, para ficarmos
em indicações do próprio Marx “comer, beber, comprar livros, ir ao teatro ou ao
baile, ao bar, pensar, amar, teorizar, cantar, pintar, poetar, etc.”.
A defesa de nossas opiniões e a luta por nossos
objetivos demandam firmeza e inteligência, não estupidez e desumanidade. A
cultura do ódio, esta sim deve ser repelida e extirpada de nosso meio.
Fica aqui a nossa mensagem de respeito, de
admiração e de saudade pela morte de D. Marisa Letícia, que pagou em vida e na
morte pela bestialidade da cultura do ódio.
Haroldo Lima é membro da Comissão Política
Nacional do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil.
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