28 março 2017

Uma questão crucial

Desafios atuais do “conteúdo local”

Haroldo Lima, no Blog do Renato

Uma conjugação de fatores responde pela situação adversa por que passa a atividade econômica no Brasil. Embora com atraso, a crise do sistema capitalista internacional, iniciada em 2008, nos atingiu. Houve a queda dos preços das commodities, desde 2014, em particular do petróleo. Há os embaraços provocados pela crise política interna.
Foi também significativa no aprofundamento dessa crise a Operação Lava Jato. Esta Operação, no seu início, despertou esperanças no povo. Parecia uma cruzada séria contra a corrupção. Mas, cedo mostrou  um viés político acentuado e o uso de métodos ilegais e perigosos, como a formação de uma espécie de Estado de exceção dentro do Estado de direito, o desrespeito ao devido processo legal, as delações arrancadas, o vazamento seletivo de informações, a seleção de corruptos a serem combatidos e de outros a serem protegidos, a transformação da atividade investigativa em um show pirotécnico escandaloso a serviço de política conservadora, tudo em conluio com a grande mídia.
Mas, talvez mais grave que tudo, foi que, ao invés de punir com rigor corruptos e corruptores com culpas formadas, a Lava Jato e a grande mídia desencadearam um processo de desmoralização e liquidação das maiores empresas de engenharia brasileira, praticamente inviabilizando-as, ao tempo em que abria as grandes obras do país às concorrentes estrangeiras, festejadas aqui sem nenhuma ressalva, mesmo aquelas que tem problemas de corrupção em seus países de origem.
No setor de petróleo e gás, outros fatores se apresentaram para compor o quadro de amargura. A queda dos preços do petróleo, desde 2014, foi fundamental, mas também os ataques feitos à Petrobras a partir da Lava Jato, que, ao invés de desbaratar e prender uma quadrilha de bandoleiros que atuava na companhia, preferiu,com estardalhaço chocante, lançar suspeita sobre toda a Petrobras, como se a nossa grande estatal estivesse completamente contaminada pela corrupção. A atividade da Petrobras se retraiu e com ela a de uma plêiade  de empresas do seu ciclo produtivo.
Finalmente, entra em cena  as controvérsias que influenciarão a política de conteúdo local, a ser seguida a partir de agora pelas companhias petroleiras no Brasil.
Esta é uma questão que demanda firmeza e flexibilidade, para que prejuízos maiores não apareçam, seja por recuo na defesa da industria nacional, seja por exigências que terminam mantendo uma reserva de mercado para empresas tecnologicamente atrasadas.
Desde 1953, quando a Petrobras foi criada, até 1977, quando foi extinta sua exclusividade no exercício das atividades petrolíferas no Brasil, sua demanda norteou o desenvolvimento da indústria para-petroleira (IPP) nacional. Esta situação, por um lado, fomentou o surgimento e crescimento da IPP no Brasil mas, por outro lado, limitou a atividade desse segmento aos conceitos tecnológicos de uma única empresa e restringiu sua atividade a uma relação empresarial também única. A IPP surgiu,  mas não ganhou autonomia nem competitividade.
A partir do chamado fim do monopólio da Petrobras, em 1995, e do surgimento, em 1997, da Agência Nacional do Petróleo, ANP, começou a preocupação do Estado brasileiro com a ampliação e diversificação da IPP, o que o levou a introduzir nos contratos de concessão da ANP uma chamada “cláusula de conteúdo local”.
Assim é que,  desde a Primeira Rodada de Licitações de Blocos Exploratórios da ANP, em 1999, até agora, esta cláusula consta dos contratos de concessão  que as vencedoras dos certames assinam. Na Primeira Rodada, contudo, os percentuais de conteúdo local oferecidos pelas empresas não eram obrigatórios, eram declaratórios, computados somente para efeito de pontuação das ofertas das diferentes empresas. Este modelo permaneceu até a Quarta Rodada, em 2002.
A Quinta e Sexta Rodadas, realizadas em 2003 e 2004, já no governo Lula, viram mudanças importantes serem introduzidas: os percentuais de conteúdo local ali apontados passaram a ser obrigatórios e diferenciados, para bens e serviços, em blocos terrestres, blocos em águas rasas e blocos em águas profundas.
Ajustamentos ocorreram nas rodadas seguintes. Na Sétima, em 2005, incorporou-se ao Contrato de Concessão uma Cartilha de Conteúdo Local, elaborada pelo Programa de Mobilização da Indústria de Petróleo e Gás Natural, o Prominp, criado em 2003. A cartilha uniformizava a forma de aferir a origem, nacional ou estrangeira, dos produtos comprados.
Em novembro de 2007, a ANP deliberou pela criação de empresas que viessem a dar praticidade ao controle da referida cláusula E surgiu o Sistema de Certificação de Conteúdo Local, que estabelece a metodologia para a certificação e as regras para o credenciamento junto à ANP, das certificadoras que surgissem.
A cartilha foi incorporada à regulação da Agência (Resolução nº 36 da ANP), para ser usada pelas empresas credenciadas pela ANP para emitir os certificados de conteúdo local.
Após a descoberta do pré-sal e a implantação do regime de partilha da produção foi criada a Pré-Sal Petróleo SA, PPSA, empresa 100% estatal, que, em nome da União,  faz “a gestão dos contratos de partilha de produção” celebrados no pré-sal, bem como age sobre as operadoras, para que cumpram “as exigências contratuais referentes ao conteúdo local” (Lei 12.304/10).
Essa política, com as mudanças referidas, trouxe resultados positivos à industria brasileira.  De acordo com o Programa de Mobilização da Indústria do Petróleo, o Prominp, desde 2003, quando o órgão foi criado, a participação da indústria nacional nos investimentos do setor saltou de 57% em 2003 para 75% no primeiro semestre de 2009, o que representou um valor adicional de 14,2 bilhões de dólares de bens e serviços contratados no mercado nacional, e a geração de 640 mil postos de trabalho no período. A indústria naval conheceu uma ascensão bastante significativa, que não se sustentou, contudo.
O que é certo é que o país não pode abrir mão da ampliação de sua indústria para-petroleira, IPP, pelo que a política de conteúdo local, que envolve as concessionárias e contratadas da ANP, deve ser aprimorada, ajustada às condições concretas mas, de forma alguma, abandonada. É sob essa ótica que devem ser examinadas suas controvérsias atuais.
A primeira vem do fato de que as concessionárias preferem importar bens e/ou serviços,  a terem que arcar, segundo argumentam, com produtos locais sem a qualidade, sem o preço e fora do tempo de fabricação requeridos. Essas concessionárias optam por descumprir as exigências do conteúdo local, ainda que tenham que pagar as multas, às vezes pesadas, da ANP.
A BG, por exemplo, no primeiro semestre de 2015, foi multada em R$275 milhões, a maior penalidade até então  exarada pela ANP no capítulo de conteúdo local.  Entre 2013 e 2015, as multas totalizaram R$ 315 milhões. Em 2015 foram trinta multas. (ESP, 15/06/2015, fonte ANP)
A Petrobras, sendo, de longe, a maior concessionária nos campos petrolíferos brasileiros, é, também, quem mais recebe multas por descumprimento da cláusula de conteúdo local. Sozinha, a estatal respondeu por 42% do total das multas aplicadas em 2014. (Id)
No enfrentamento desse problema, há que se ter uma posição de princípio, a de que a política de conteúdo local é peça importante de uma política industrial brasileira progressista e por isso, cabe aprimorá-la, não revogá-la.
Isto estabelecido, não se pode onerar as petroleiras obrigando-as a adquirir produtos de qualidade duvidosa, a preços e prazos de entrega desajustados.  As “cláusulas de conteúdo local” dos contratos da ANP sempre afirmaram a preferência por fornecedores brasileiros cujas ofertas apresentassem preço, prazo de entrega e qualidade equivalentes aos estrangeiros. A defesa do produtor nacional deve ser feita, mas não pode se transformar em prática que favoreça gestões obsoletas e empresas de tecnologia atrasada. Isto seria um erro.
A ANP anuncia para os próximos meses uma Rodadinha, a 14ª Rodada e duas rodadas no pré-sal. É de todo conveniente aprimorar a cláusula do conteúdo local, mantendo-a irreversível,
Diferentes setores têm levantado, a propósito, a inconveniência de se manter percentuais obrigatórios para quase 90 itens, como é hoje. Não seria o caso de substituir esses itens, ou por número bem menor de bens, em que já temos capacidade mínima de competir ou possibilidades de fazê-lo, ou ainda de realçar não bens, mas segmentos industriais, como máquinas, engenharia de projetos, infraestrutura e outros?
Discute-se também a opção por um índice global de conteúdo local, que incluísse bens e serviços, o que pode levar à distorção de se atingir um determinado índice “global” sem se incorporar nada de máquinas e equipamentos.
Concessionários tem criticado o modelo em vigor chamando-o de “indústria de multas”. Embora haja evidente exagero nessa formulação, a questão pode nos remeter a outro desafio, o de adotar uma política de conteúdo local que não abrigue a idéia de multa, mas sim a de incentivo. Alguns países procedem assim, e têm conseguido vitórias, como a China.  A empresa que atingir metas determinadas de conteúdo local é premiada comdesonerações, subsídios e regimes aduaneiros beneficiosos.
Por último, está em curso um problema importante. A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) abriu uma Consulta Pública para discutir uma solicitação da Petrobras para que a Agência libere todas as exigência de conteúdo local para uma plataforma do tipo FPSO, no campo de Libra, no pré-sal. Esse pedido foi apresentado pela Petrobras em 30 de agosto de 2016 e foi marcada uma Audiência Pública sobre o assunto para 18 de abril de 2017.
Na argumentação da Petrobras aparece a afirmação de que “a plataforma só será viável economicamente se o consórcio for liberado das obrigações” de conteúdo local. É o conhecido pedido de waiver, ou da desistência em cobrar o que é de direito. E a diretora de Exploração e Produção, Solange Guedes, da antiga equipe da Petrobras, afirmou que “o consórcio da promissora área de Libra, no pré-sal da Bacia de Santos, precisa ser liberado completamente da obrigação de conteúdo local”. (FSP 11/01/2017) E que, “no limite, semwaiver, não terá projeto” de Libra! A Petrobras, além de Libra, já solicitou também pedido de waiver para o FPSO de Sépia, na cessão onerosa da Bacia de Santos.
Agiu com prudência a ANP ao não deliberar de motu próprio sobre tema tão delicado, e aberto um processo de Consulta seguida de Audiência Pública. O waiver para este caso, como para outros pedidos pela Petrobras,abrirá um precedente perigoso para a política de conteúdo local e para o respeito aos contratos firmados.
Por outro lado, correr-se o risco de truncar o projeto de Libra é preço que não se deve pagar. Em casos como tais, espera-se que a Consulta da ANP ilumine alguma solução, como a prorrogação do prazo para cumprimento da cláusula, mas mantendo-a, inclusive porque revogá-la, cria um precedente perigoso para a indústria nacional e para a regulação da ANP, que pode ser questionada juridicamente.
Haroldo Lima – engenheiro, foi diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo, Biocombustíveis e Gas Natural e é membro da Comissão Política Nacional do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil

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