Reaparições amorosas
Apesar
dos contextos diferentes (a ditadura brasileira e a ortodoxia judaica), Amores
de Chumbo e Desobediência tratam de amores do passado que ressurgem para
bagunçar a relativa harmonia do presente
Carlos Alberto Mattos, na Carta Maior
Memórias
do amor e do cárcere
Miguel foi
prisioneiro político durante a ditadura. Sua amada Maria Eugênia esteve presa
com ele, mas depois exilou-se na França. Sem mais notícias um do outro,
refizeram sua vida amorosa. Miguel casou-se com Lúcia, uma amiga comum. Eis que
43 anos depois, enquanto o casal comemora sua longeva felicidade com o filho e
a neta, Maria Eugênia reaparece com uma revelação que vai alterar profundamente
essa composição afetiva. Amores
de Chumbo coloca
o passado em perspectiva e investiga os limites do ressentimento e do perdão.
O projeto
inicial da diretora pernambucana Tuca Siqueira era um filme de época sobre a
vida dos militantes. Ela é filha do político Luciano Siqueira e da militante
Luci Siqueira, ambos presos e torturados no regime militar, e já realizou dois
documentários sobre ex-presos políticos na faixa etária dos protagonistas de Amores de
Chumbo (um deles, A Mesa
Vermelha, pode ser visto aqui. Quando se decidiu
por um filme de ficção ambientado nos dias de hoje, colocou a memória como
denominador comum entre o ativismo político e os descaminhos do amor.
Assim é que,
nas conversas entre os personagens, são frequentes as menções tanto a Che Guevara
e Pablo Neruda quanto a lembranças pessoais como a canção "Negro
Amor" na voz de Gal Costa. No entanto, não se trata de um filme nostálgico
ou lamuriento. Mais que a dor do que não foi, interessa àquelas pessoas o que
será de agora em diante. Como tocar a vida depois de saber que tudo poderia ter
sido muito diferente.
Com sua trama
relativamente simples e até clássica, Amores de Chumbo alcança uma ressonância maior pela maneira
sóbria e intensa com que foi realizado. O elenco de larga experiência no palco,
a encenação baseada em tempos distendidos e longos diálogos sem corte, assim
como a expressiva alternância da câmera entre proximidade e distanciamento,
conferem um forte senso de teatralidade. É extraordinária a maneira como
Aderbal Freire-Filho se apropria do personagem de Miguel, um professor de
Sociologia que vê sua vida ser reconfigurada a posteriori e
experimenta um impasse devastador. As cenas dele com Juliana Carneiro da Cunha
(Maria Eugênia) são magnetizantes pelo que transmitem da emoção daquele
protocasal irrealizado. É particularmente comovente a sequência em que os dois
atualizam suas memórias no interior de uma cela da antiga Casa de Detenção de
Recife. Augusta Ferraz (Lúcia) e Rodrigo Riszla (o filho Ernesto) acompanham o
mesmo nível de naturalidade e convicção.
Com esse
trabalho, Tuca Siqueira demonstra sensibilidade especial para lidar com dramas
individuais conjugados à História, um pouco como tem feito Tata Amaral em seus
últimos filmes. Manter-se à margem das tendências "do momento" no
cinema brasileiro, preferindo criar uma dicção singular, é outra qualidade que
salta aos olhos em Amores de Chumbo.
Duas mulheres contra a Torá
Duas mulheres contra a Torá
Com Desobediência o
chileno Sebastián Lelio se consagra como um exímio narrador do feminino em
luta
contra condições adversas. A solidão em Glória,
a normatividade sexual em A Mulher Fantástica e agora o amor lésbico numa comunidade
anglo-judaica ortodoxa.
A atmosfera
claustrofóbica daquele grupo social é enfatizada desde a chegada de Ronit
(Rachel Weisz), a ovelha negra que se desgarrou e virou fotógrafa moderninha em
Nova York. Ela retorna ao subúrbio de Londres para o funeral do pai e descobre
que fora deserdada. Em compensação, reencontra a amiga Esti, com quem teve uma
relação amorosa na juventude e agora está casada com um amigo comum, o jovem
rabino Dovid (Alessandro Nivola).
Os ambientes
sombrios, os espaços exíguos e os costumes austeros combinam-se para definir
tudo aquilo que Ronit não mais tolera. Apesar disso, ela não deixa de ser
afetada pelo desprezo do pai e a retração das pessoas por conta de um escândalo
no passado. Essas duas dimensões da personagem é uma das riquezas do roteiro
baseado no romance homônimo de Naomi Alderman, escritora criada num meio
semelhante ao retratado no filme.
Tal como
Ronit, sua amada Esti também se divide. No seu caso, entre o desejo de
liberdade e a conformidade com um modo de vida a que ela sente ter sido
destinada desde sempre. Na primeira sequência do filme, o venerando rabino
Krushka, pai de Ronit, sofre um enfarte justamente enquanto fazia um sermão
sobre o livre arbítrio dos homens, a única criação divina capaz de desobedecer.
Como muitos outros
filmes sobre a temática da ortodoxia judaica, Desobediência se
esmera na representação dos instintos reprimidos. Conversas interrompidas por
temas-tabu, vida sexual extremamente regrada, padronização através de roupas,
perucas, etc. Nisso não vai nenhum enfoque novo ou especialmente interessante.
O que ressalta é mesmo a relação entre as duas mulheres, assim como as brechas
que elas encontram para satisfazerem sua sede de amor após tão longo
afastamento.
As atrizes
estão corajosas e convincentes em sua química. A direção de Lelio não dispensa
os apelos do melodrama, inclusive no uso transbordante da trilha sonora de
Matthew Herbert (o mesmo de A Mulher Fantástica). Se o desfecho conciliatório e derrotista
decepciona um pouco, é por conta das negociações de uma dramaturgia que ousa
somente até certo ponto.
Leia mais sobre temas da atualidade: https://bit.ly/2Jl5xwF e acesse o canal ‘Luciano Siqueira opina’, no YouTube https://bit.ly/2ssRlvd
Nenhum comentário:
Postar um comentário