11 agosto 2018

Violência sexista



Precisamos levar a sério o crime de feminicídio
A violência doméstica exige esse exercício antropológico. É só por meio do entendimento da sua realidade que se pode interpretar as questões jurídicas relativas a ela. A situação deve ser observada pela perspectiva de quem está submetido a ela.
Por Ana Cristina Aguilar Viana* e Letícia Regina Camargo Kreuz**, no Justificando (reproduzido no portal Vermelho)

Histórias de violência doméstica estão diariamente nas mídias sociais. Um jovem que empurra a namorada grávida sobre um ônibus a fim de evitar que o futuro bebê coloque em risco o seu intercâmbio intencional.[2] Uma mulher esfaqueada pelo ex-marido em um bar.[3] Um companheiro traído pelo Whatsapp que pratica feminicídio.[4] Os casos são diversos e corriqueiros, tratados pela imprensa como sinais de amor, paixão e ciúmes, muitas vezes romantizados. Os resultados, por outro lado, têm quase sempre o mesmo destino: são trágicos.

No mundo todo, 38% das mortes de mulheres decorrem de agressões por parceiros íntimos.[5] O Brasil é o país que mais sofre com violência doméstica: 23% das mulheres sofrem com seus parceiros. Além disso, a cada 11 minutos, uma mulher é violentada no país.[6] Números, contudo, que não retratam a realidade, pois a violência é subnotificada. Isto é, apenas 10% das agressões são levadas ao conhecimento público.[7]

Trata-se de um panorama grave, que frequentemente passa desapercebido à sociedade. Infelizmente, esse tipo de violência é tratado muitas vezes de maneira jocosa por uma sociedade que cultiva valores que a incentivam e/ou a mascaram. Como retrata Maria Berenice Dias “a banalização da violência doméstica levou à invisibilidade do crime de maior incidência no País e o único que tem perverso efeito multiplicador”.[8]

Com efeito, a violência contra a mulher é uma das mais persistentes e devastadoras formas de violação de direitos humanos no mundo todo. Não por acaso, ela é considerada como um grande obstáculo para o alcance das metas inscritas na agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.[9]

O texto acima foi escrito há mais de um ano, mas se amolda perfeitamente ao momento atual.[10]Os doze anos da Lei Maria da Penha, em aniversário neste 07 de agosto, trouxeram ao debate a cotidianidade da violência doméstica. Ainda assim, casos de mulheres mortas pelos maridos se somam nos noticiários como histórias quase banais: “mais uma mulher atacada”, “mais uma mulher jogada de uma sacada”, “mais uma mulher esfaqueada”. A Lei do Feminicídio, de 2015, que foi alvo de críticas por supostamente gerar uma “desigualdade” de gênero, ainda não resolve o mínimo: mulheres continuam a ser mortas por seus maridos, namorados e companheiros.

A triste história de Tatiane Spitzner, com grande repercussão atualmente, é mais um retrato deste cenário. Ela escancara que a violência contra a mulher não é um mito ou um exagero, mas sim uma realidade constante. Tatiane foi a vítima do dia 22 de julho. Depois dela, tantas outras viraram manchetes. Whailly Michele Mendes da Silva foi atacada em 4 de agosto pelo ex-namorado com 13 facadas ao atender a um pedido de “abraço de despedida”. Em 6 de agosto, Carla Graziele Rodrigues Zandoná despencou do 3º andar de um prédio no Distrito Federal com um corte no pescoço e não resistiu aos ferimentos – o marido, preso embriagado, nega o crime. Na manhã do dia 7, Adriana Castro Rosa Santos foi morta pelo marido, que depois cometeu suicídio. Nomes que se acumulam, histórias interrompidas pelo machismo sistêmico.

Maria da Penha Maia Fernandes, que dá nome a uma das legislações mais importantes do mundo nessa área, poderia ter sido um desses nomes, mas ousou sobreviver. A farmacêutica brasileira que sofreu duas duras tentativas de morte de seu então esposo, um professor colombiano, é uma das pioneiras na luta contra a violência doméstica no País. Na primeira tentativa de assassinato por que passou, foi vítima de uma simulação de assalto. Na segunda, o professor tentou eletrocutá-la. Pelas agressões, Maria da Penha ficou paraplégica. Apenas 19 anos após os acontecimentos o agressor foi preso. Condenado a oito anos, permaneceu apenas dois dentro do cárcere. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos recebeu denúncia sobre os fatos e o episódio foi o primeiro a ser definido como crime doméstico. A Corte condenou o Brasil e, cumulada às pressões nacionais, publicou-se a Lei nº 11.340/2006, conhecida popularmente como Lei Maria da Penha.

Inicialmente, portanto, o que se tem é uma nova legislação penal cujo objetivo é coibir a violência doméstica contra a mulher, além de estabelecer punições aos agressores. O caráter preventivo da lei é seu enfoque principal. Não se pode deixar de valorizar as medidas protetivas trazidas na lei. A sua inovação está na possibilidade de aplicação de medidas de proteção urgentes, como ordens de restrição e a punição dos agressores com várias penalidades criminais, como prisão, que pode variar de três meses a três anos, com a possibilidade de ser aumentada posteriormente.

Deve-se ressaltar que a ação criminal em matéria de agressão física pode ser uma iniciativa do promotor, o que significa que, mesmo que a vítima não queira denunciar, será feita a denúncia.

O exame da norma revela que uma amplitude maior que somente o estabelecimento de penas e de novos tipos penais, com abordagens distintas de solução do problema. Ela está concentrada na prevenção dos crimes de violência contra a mulher, assim como na restrição do contato entre agressor e vítima e na ressocialização do sujeito que comete tais atos.

Não obstante, estudo realizado pelo Ipea em 2015 expôs a falta de Centros de Referência de Atendimento à Mulher (CRAM), que deveriam oferecer ajuda legal e psicossocial e oferecer os cuidados adequados. Entre todas as 5.561 cidades brasileiras, apenas 191 desses centros especializados e a maioria dos 214 centros são colocados na região Sudeste. Este estudo também mostrou que os abrigos que oferecem asilo a mulheres com ameaças mortíferas iminentes são escassos: apenas 77 deles em todo o País, o que corresponde a 1,3% de todas as cidades.

Ainda que se compreenda a gravidade da prisão e os problemas que ela representa para o acusado e para a sociedade, considerada a gravidade da situação carcerária brasileira, o paradoxo é evidente, na medida em que se tem uma vítima que necessita de uma resposta do Estado compatível com o grau de violência que vem sofrendo e que dê conta de colocar-lhe em segurança. Assim, mesmo que a prisão preventiva não deva ser a primeira resposta possível do Estado em relação a um agressor, ela é muitas vezes a resposta que consegue manter a mulher a salvo da violência e, em casos mais graves, consegue resguardar sua vida.

Mesmo que a estrutura da lei seja muito mais ampla e aparente uma tentativa de mudança mais ampla, não apenas pela criminalização, a prática continua focada nos aspectos criminalizantes, na pena e no agressor, não importando de fato em um rompimento com a realidade de violência e dominação heteropatriarcal.

A solução, no entanto, parece ser mais difícil do que as respostas da lei. A prevenção segue uma realidade distante – impossível para tantas Tatianes, Whaillys, Carlas, Marias… – não há como se falar em igualdade quando se tem vítimas fatais diárias. Romper com essa realidade demanda mudanças estruturais, a começar pelo ensino. A necessidade de se falar de gênero nas escolas é evidente, uma vez que as mudanças sociais ocorrem a partir de viradas culturais, de câmbios estruturais e de educação de qualidade.

É preciso repensar estruturalmente a violência contra a mulher no Brasil. Nossas mortes não podem mais ser meros números e estatísticas. Nossas vidas não podem ser banais.

*é advogada, mestre em Políticas Públicas, professora e presidenta do Instituto Política por.de.para Mulheres.
**é advogada, doutoranda em Direito e vice-presidenta do Instituto Política por.de.para Mulheres.
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