Inamara Mélo
Carta aos meus familiares
Inamara Mélo, no Facebook
“Li não. Vou esperar virar filme”. Essas palavras ficaram dias ecoando em minha cabeça.
Foram a resposta de um primo no zap a um texto sobre o risco de eleger um
candidato que apoia a tortura. Depois de ver o noticiário, com as pesquisas
eleitorais apontando que só um grande acontecimento será capaz de mudar o que
parece ser o nosso destino, me peguei pensando que tudo isso um dia pode mesmo
virar filme. E com certo medo, percebo que posso estar nele.
Já não tenho a ambição de mudar o voto de familiares que, para minha tristeza, se mostram
convictos em sua preferência eleitoral. No entanto, senti uma enorme
necessidade de saber se estes meus queridos familiares - aqui sem nenhuma
ironia, pois são pessoas às quais nutro um grande afeto - se dão conta de que
sou uma militante comunista. De que meu companheiro é dirigente nacional de um
partido comunista. De que entre os nossos amigos, gente que frequenta a nossa
casa, estão pessoas que foram presas e torturadas pelo regime militar.
Trabalhamos juntos. Conhecemos sua integridade e a justeza de suas ideias.
Comungamos com elas. Será que meus familiares desconhecem que o que aconteceu à
gente como Alanir Cardoso não foi filme? Poderia ter sido... Alanir - ex-presidente
estadual do PCdoB, sucedido justamente por meu companheiro - foi encapuzado,
colocado dentro de uma veraneio por homens armados com metralhadoras e levado
para os porões do DOI-CODI, no Recife, e depois para um quartel do Exército
localizado em Brasília, locais em que durante 74 dias foi alvo de sessões de
tortura, de choque elétrico a pau-de-arara. Viveu anos de uma rotina de
sofrimento. No presídio na Ilha de Itamaracá, ficou preso por quatro anos e
meio. O crime por ele cometido foi lutar pela democracia. Sabe o que ele, a sua
companheira e outros camaradas que um dia foram perseguidos se diferem do que
somos e pensamos? Apenas o momento...
Alguém pode dizer
que estou apelando, pois no plano de governo de Bolsonaro não inclui a tortura.
Ou que a sua eleição não significa que teremos de volta a ditadura. Sobre isso,
pergunto: será mesmo que meu medo não tem razão de ser? Eu, comunista que sou,
não deveria temer a eleição de um militar que exalta os torturadores e diz que
o problema é que eles “deviam ter matado uns 30 mil ao invés de torturar”? Será
mesmo que um militar, que diz que vai compor o governo com outros generais,
tratará de se manter num regime democrático, respeitando os direitos civis de
quem a ele se opuser?
Com a curiosidade
de quem busca entender, procurei ver o que estes meus familiares compartilham
em suas redes sociais e o que justificaria o apoio destemido ao ex-capitão.
Encontrei, num post de uma amada tia, de que são os infratores os que temem seu
governo. Por isso, a ela me reporto aqui. Tia, não compactuo com o mal feito.
Nem com a corrupção. Não faço parte de uma organização criminosa. Nestes onze
anos de convivência com meu companheiro, do que mais me orgulho são a sua
retidão e hombridade. Não somos infratores, nem defensores do mal, como as
palavras por você publicadas nos fazem parecer. Somos gente solidária. Que
preza pelo coletivo e pelo bem comum. Que respeita os outros e trabalha duro.
Não entendo o comunismo como religião e muito menos sou seguidora do diabo. Acredito
nos valores cristãos e tento praticá-los cotidianamente.
Hoje chego à
conclusão de que o que fizemos de errado nossa vida inteira, eu e meus
companheiros, foi não nos fazer entender. Há quase 20 anos participo de
governos progressistas. Neles, nunca assisti nada que se parecesse a uma
proposta de tornar o Brasil uma Venezuela. Vi, sim, muitos projetos que
ajudaram a melhorar a vida do povo. Assisti também políticos de direita e de
esquerda que erraram e se corromperam. Não em um partido, mas em vários. Pela TV,
vi casos escandalosos de malas de dinheiro que infelizmente ficaram impunes.
Sou mais uma brasileira a repudiar esse tipo de política. Mas como foi que o
conceito de gênero, aceito e adotado pela ONU em acordos internacionais por 170
países para explicar tão somente as razões da opressão das mulheres, passou a
ser tratado no Brasil como “ideologia de gênero”, como se em algum momento
quiséssemos alterar a sexualidade das crianças? Trabalho na Secretaria da
Mulher e nunca ouvi falar do kit gay.
Sabe, tia...Fico
pensando o que sentiram as bruxas queimadas pela inquisição. Os judeus mortos
na câmara de gás. Os políticos perseguidos pelo regime militar. Como eles devem
ter se sentido incompreendidos e injustiçados! Todos eles tinham parentes que
certamente choraram seus mortos... Parece um tempo distante, mas a história é
cíclica. E em todos os períodos em que a humanidade misturou a religião ao
poder do Estado, a razão foi suplantada pelo dogma. Do que lhe adianta dizer
que simplesmente não existe nenhum projeto da esquerda que obriga as igrejas a
casarem homossexuais? O tal projeto fala de um direito civil, não religioso.
Você acha que eu não deveria tratar com respeito e dignidade uma pessoa
homossexual?
Não propomos
estatizar os veículos de comunicação para proibir narrativas contrárias ao
partido. Sou jornalista. Na Universidade a gente aprende que o jornalismo
deveria buscar a imparcialidade, tentando traduzir para a opinião pública as
diferentes opiniões de uma sociedade. Assim como acontece em outros países
capitalistas. É isso que defendemos.
Meu texto já se
alonga e não dei conta de pontuar tudo que me chamou atenção em sua timeline.
Vejo-me na obrigação de pontuar apenas duas coisas: Assim como você, desejo ver
o país livre de tantas injustiças. E não queremos criminalizar o cristianismo.
Temos o maior orgulho por ser um deputado do meu partido o autor da Lei de
liberdade de culto, escrita na Carta Magna em 1946, depois anexada ao Art. 5º
da Constituição de 1988. Temos profunda convicção sobre a necessidade do
respeito às mais diferentes religiões, assim como aos diferentes
posicionamentos políticos, para o avanço da civilidade. Mas tenho muito medo de
regimes onde o direito de pensar diferente não seja respeitado.
Por isso não
temos segurança sobre qual será o futuro com a eleição de Bolsonaro. Daqui a
alguns anos, talvez possamos conversar sobre essa carta. Ou não, se essa
história um dia virar filme e eu não puder assisti-lo com você.
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