13 dezembro 2018

AI 5, permanências nefastas


O Doi-Codi do Século XXI
Edson Teles, Jornal GGN
Para o Brasil branco, masculino e heteronormativo, as violências do Estado apareceram como erros ou falhas do sistema, corrigíveis se caminhássemos com parcimônia
Em 13 de dezembro de 1968 foi imposto ao país o Ato Institucional número 5 (AI-5). Momento que marcou o endurecimento da ditadura inaugurada com o golpe militar de 1964. As medidas autoritárias adotadas até então não estavam mais sendo suficientes. Impunha-se nos primeiros anos de regime militar a disseminação da prisão e da tortura (calcula-se que somente nos primeiros meses após o Golpe mais de 20 mil pessoas tenham sido torturadas), o fechamento do Congresso, o cancelamento de eleições, a cassação de opositores das mais variadas forças políticas.
Contudo, o ano de 1968 carregava as marcas da revolta e da resistência. Dezenas de milhares de manifestantes, em passeatas e ocupações de universidades forneciam a amplitude da condenação social e política do governo autoritário. Os sindicatos se reorganização e greves potentes estouraram em vários territórios da produção industrial. Osasco e Contagem foram os destaques. Nessa última cidade, na grande Belo Horizonte, o então ministro-coronel do Trabalho, Jarbas Passarinho, chegou a comparecer pessoalmente a uma assembleia dos trabalhadores metalúrgicos para ameaça-los em caso de continuidade do movimento. Liderados, entre outros, pela mulher negra Maria Imaculada Conceição, os trabalhadores não se intimidaram e no dia seguinte à visita retomaram a paralisação, com ainda mais adesão.
A situação ficava cada vez mais fora do controle projetado pelo governo. Nos meios da esquerda revolucionária e das articulações de forças nacionalistas começava a ser organizada a luta armada para a derrubada da ditadura. O contexto caminhava para o fortalecimento das lutas populares, dos sindicatos, das organizações tradicionais e dos movimentos espontâneos. Parece que o momento dizia que ou os militares e seus aliados aprofundavam a ditadura, ou teriam de engolir uma democracia radicalizada em favor dos setores historicamente memorizados pelo capitalismo industrial que se avolumava no país de herança escravagista.
Há dois elementos que gostaria de destacar do Ato de dezembro de 1968.
O primeiro se refere ao conteúdo discursivo do Preâmbulo, o qual faz uso de vocabulário próprio da democracia e, poderíamos dizer, até dos direitos humanos. Diz-se que os “Atos com os quais se institucionalizou [a ditadura teve] fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana”, bem como seguiria “na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria”.
Do ponto de vista discursivo se identifica claramente uma articulação entre o governo autoritário e o léxico global da democracia. Diria que havia uma preocupação em construir a ideia de continuidade com a história democrática anterior, buscando com isso legitimar o governo militarizado.
O segundo elemento de destaque nas formulações do AI-5 é seu aspecto de liberação da violência institucionalizada. Além do fechamento do Legislativo, da autorização para intervenção em estados e municípios e a proibição completa de qualquer manifestação, outras medidas indicam a organização institucional da repressão política. O artigo décimo simplesmente suspende o habeas corpus para crimes contra a segurança nacional, o que geraria um explosivo aumento dos desaparecimentos políticos no início dos anos 70. A estrutura é plenamente confirmada pelo artigo décimo-primeiro, no qual “excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos”, a auto-anistia prévia. Ou, como a história viria a nomear cinquenta anos mais tarde, o excludente de ilicitude.
Pouco tempo depois, sob a orientação repressiva de montagem das estratégias e estruturas da violência de Estado, a ditadura fundou o DOI-CODI. Seria a efetivação da política de centralização da segurança nacional, que abrangeria as ações diretas de “manutenção da ordem”, bem como as análises de informações e a coordenação e planejamento dos diversos órgãos de segurança. Essa instituição foi a responsável, segundo o Relatório da Comissão Nacional da Verdade, por tortura, assassinato e desaparecimento de centenas de brasileiros.
A violência de Estado ganhou desde então um novo modelo, o do Estado policial securitário.
Cinquenta anos atrás, quando do decreto de imposição do AI-5, se estabeleceu a efeméride do que hoje podemos chamar de “militarização da política”. Com o Ato se institucionalizou definitivamente a tortura como a razão de Estado e o assassinato e desparecimento enquanto as principais formas de se lidar com o pensamento contrário. Hoje, passadas cinco décadas, todo sistema penal, incluindo a cumplicidade do sistema de justiça e também, é claro, os centros de detenção dos adolescentes em conflito com a lei, os hospitais de custódia, os camburões, os territórios sob intervenção militar, momentânea ou mais longa, são espaços anômicos nos quais a tortura é a prática cotidiana. No Brasil inaugurado pelo AI-5 a exceção é a regra.
Inaugurou-se o Estado policial brasileiro por meio do uso combinado de um discurso “democrático” com a fabricação de artefatos de repressão.
No dia 15 de outubro de 2018, em meio aos conflitos da campanha eleitoral para presidente, a mais violenta desde o fim da ditadura, o presidente golpista Michel Temer assinou o decreto de criação da Força Tarefa de Inteligência. Segundo o texto do decreto, trata-se de um órgão destinado a “analisar e compartilhar dados e de produzir relatórios de inteligência” com o objetivo de coordenar as ações de combate ao crime e em defesa da ordem democrática.
Sem deixar claro o que seria “crime” e quais os limites de atuação do grupo, o decreto criado e redigido pelo general Sérgio Etchegoyen colocou o Gabinete de Segurança Institucional no comando da iniciativa. O qual será agora dirigido pelo general Augusto Heleno, talvez o militar mais próximo do presidente-capitão.  A Força Tarefa irá coordenar dados e ações de mais de uma dezena de órgãos, como a Agência Brasileira de Informações (Abin), os centros de inteligência das Forças Armadas, o Conselho de Controle das Atividades Financeiras (Coaf), Polícia e Receita federal, Departamento Penitenciário e Secretaria Nacional de Segurança Pública.
Se somar à Força Tarefa a Lei Antiterrorismo, de 2016, cujo conteúdo permite a criminalização dos movimentos e lutas sociais, emerge a reestruturação da centralização de políticas repressivas. Fabrica-se, em meio às transformações dos últimos anos, um DOI-CODI do século XXI, manejando centralização com big datas, tecnologias de vigilância e ideologia de segurança nacional. Sabe-se que com o novo governo reacende-se o discurso de que haveria um inimigo da nação e esse seria interno, íntimo.
Há que se notar que a Lei Antiterrorismo tem um adendo em forma de projeto de lei tramitando no Congresso (o PL 10431/2018) que tem entre outras definições a autorização para que o Ministério da Justiça cumpra sanções administrativas sumárias, sem decisão do Poder Judiciário, contra ativos e pessoas denunciadas por terrorismo.
Considerando ainda que o novo Ministério da Justiça é um conglomerado de Lava-Jato (leia-se ação de controle político via Judiciário), polícias e órgãos do Executivo, sob o comando do juiz-político Sérgio Moro, corre-se o risco de nos vermos diante de um novo aparato do Estado policial inaugurado em 1968.
Não se trata de dizer que a ditadura permaneceu existindo após seu fim. Ela acabou. O que permaneceu, neste tema do Estado securitário, foi toda uma estrutura repressiva, violenta e genocida. Sua sobrevivência, transmutação e sofisticação foi possível graças, principalmente, à transformação da doutrina de segurança nacional utilizada pela ditadura, em segurança pública no estado de direito. Sob essa nova vestimenta, as ações de violência do Estado foram sendo limitadas ao genocídio dos jovens negros, pobres e periféricos. Bem como contra as mulheres, as pessoas LGBTs, os indígenas e outras minorias políticas.
O Brasil inaugurando com o Ato Institucional número 5 soube combinar as antigas formas de organização social e de dominação, especialmente o racismo, o patriarcalismo e a desigualdade social, com o uso da institucionalização de sofisticados meios de controle e vigilância.
Também não se trata de desconsiderar todas as conquistas democráticas dos últimos 30 anos. Antes, visamos apontar que paralelamente a esses avanços, manteve-se no estado de direito um Estado policial de modo quase imperceptível para os não negros, os não indígenas, os não mulheres, os não LGBTs, os não presos, os não adolescentes em conflito com a lei etc.
Para o Brasil branco, masculino e heteronormativo, as violências do Estado apareceram como erros ou falhas do sistema, corrigíveis se caminhássemos com parcimônia.
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