Quilombos
no caminho da Nasa em Alcântara
Carta Capital
O acordo
aeroespacial entre Brasil e Estados Unidos esbarra numa questão cultural aguda:
a região a ser desapropriada é um tesouro nacional
Não
há ninguém estirado nas areias da paradisíaca Praia da Mamuna. Larga como se
fossem cinco campos de futebol alinhados, a praia estende-se de um grupo de
falésias, à esquerda, a um mangue e a um braço de rio, à direita. Ao longe, no
mar, vê-se a longa fila de navios esperando para entrar no Porto de São Luís.
Mais além, após uma ravina, ganham os céus, além da bela paisagem, as torres de
comunicação e plataformas metálicas do Centro de Lançamento de Foguetes da
Aeronáutica.
O único estabelecimento comercial (na verdade, a
única construção da orla) não tem nome, é um galpão aberto com uma cozinha ao
fundo, e na tarde de domingo 12, jovens moradores se reuniam ali para ouvir as
pedras do reggae e tomar cerveja. Observavam ao longe as
plataformas. Os rapazes pertencem a algumas das 86 comunidades quilombolas que
integram os 120 povoados da região, e alguns deles participam de reuniões cada
vez mais frequentes para traçar planos para o futuro – o que inclui, muito
provavelmente, abandonarem suas praias e suas casas e se mudarem para longe em
um futuro próximo. Suas dúvidas no momento são: para onde? Quando? Quanto
tempo? O que ganharemos com isso? Cada próximo mergulho na Mamuna, nos próximos
meses, poderá ser o último.
A carpintaria
do portão, a poda das árvores, as casas de farinha no centro das vilas, o
tambor de crioula, a Festa do Divino, a tainha frita com farinha: tudo em
Alcântara carrega as marcas de uma cultura secular. Esse patrimônio muito
provavelmente é único no mundo inteiro, parte dele construído graças à história
da escravidão no Brasil, parte pela tradição de resistência dos moradores. O
conceito de patrimônio cultural ampliado está previsto na Constituição Federal,
incluindo o das formas de expressão (manifestações literárias, musicais,
artísticas, cênicas e lúdicas), estabelecido pelo Programa Nacional do
Patrimônio Imaterial (PNPI, instituído pelo Decreto Federal nº 3551/2000).
Alcântara é tombada pelo Iphan desde 2004.
Os moradores
organizam a resistência nos povoados de Alcântara (a 30 quilômetros de São
Luís, capital do Maranhão, acessível da ilha a partir de lanchas e ferryboats). Seu adversário está a
anos-luz do ritmo hipnótico do tambor de crioula: em acordo firmado em 18 de
março, em Washington, o governo brasileiro assinou um pacto comercial com os
Estados Unidos que vão se apossar de 62 mil hectares para construir foguetes e
satélites e lançá-los ao espaço sideral. O governo brasileiro espera faturar
com esse mercado, o aeroespacial, que movimenta cerca de 1 trilhão de reais por
ano no mundo (o País teria cerca de 1% disso, segundo o ministro Marcos Pontes,
da Ciência e Tecnologia). Esse acordo começou a ser costurado no governo FHC.
Já os quilombolas esperam que suas casas, seu ritmo de vida, suas tradições,
seus afetos, tudo isso possa ser preservado. O dinheiro ali não parece ter a
importância que tem para os notáveis empreendedores da sociedade capitalista –
a dona do bar não quer cobrar pela tainha frita, o líder comunitário traz a
comida para a mesa porque combina com a cerveja, mas não põe na comanda.
“A gente já veio de lá. E agora
vai sair de novo”, lamenta Lucineia Alves Nunes Torres, de 51 anos, no povoado
de Só Assim. Ela chegou ali nos anos 1980, ainda menina, vinda do litoral,
remanejada com sua família quando a Aeronáutica do Brasil estabeleceu a Base
Aeroespacial. A família de pescadores teve de se transformar em agricultora, e
agora talvez tenha de sair de novo. “Nós estamos brigando para que isso não
aconteça”, ela conta.
Como toda a área foi
desapropriada, eles nunca tiveram a titulação de suas casas e terras,
prometidas pelo Incra. A filha de Lucineia, Karlen, que cursa o último ano de
Pedagogia em Alcântara, é objetiva ao analisar a situação: “Não somos contra a
tecnologia. É uma coisa boa. O que queremos é que cumpram o que estão
prometendo. No acordo antigo, diziam que as comunidades teriam hospital, assistência
escolar para os filhos dos quilombolas. Tudo isso foi esquecido. Nunca um filho
de lavrador frequentou a escola que construíram, somente filhos de militares”.
“Veio o cara
lá dos Estados Unidos, que nem sabia falar”, lembra Cipriano Pio Diniz, de 70
anos, que nasceu no povoado da Mamuna. Ele participou de uma reunião, que teve
acompanhamento do antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, especialista na
questão. Estima que isso se deu há uns três meses. Os termos do acordo ainda
estão sendo negociados, e deve passar pelo Congresso, mas a impressão que
Cipriano tem é devastadora: “Querem o litoral todo, daqui até Bequimão”.
São 75 quilômetros contínuos de Alcântara ao município de Bequimão.
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