A newsletter desta semana é assinada pelo nosso colaborador Lucas
Figueiredo. Jornalista premiado, Figueiredo é autor de "Ministério do
Silêncio: a história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a
Lula (1927-2005)" e já publicou no Intercept algumas histórias sobre a
espionagem no Brasil, como a do megabanco de dados de redes sociais e sobre a
reestruturação da Abin pós-Olimpíadas. Neste texto, ele conta aos nossos
leitores, em primeira mão, os bastidores da atuação da agência de
espionagem no complexo xadrez que sustenta – ou não – o governo Bolsonaro.
Boa leitura.
Nas últimas semanas, um questionamento se impôs no cenário político: Jair
Bolsonaro conseguirá concluir seu governo? Por enquanto, só é possível
dizer uma coisa: depende. Depende por exemplo de como se dará a evolução da
dinâmica que sincroniza (ou desalinha) movimentos sociais, elites, imprensa
e Congresso. Ou, numa outra vertente, depende também do comportamento dos
serviços secretos (civil e militares), órgãos inclinados, como se viu
nos últimos 60 anos, à sabotagem de governos por meio de atividades
clandestinas. Se essa segunda hipótese vai prosperar, não se sabe. Uma
coisa certa, porém: as peças estão no tabuleiro e já começam a ser
movimentadas.
Partiu do presidente o gesto mais ostensivo que mostra que o tabuleiro se
agita. No início do mês, foi anunciada a troca do diretor-geral da Agência
Brasileira de Inteligência, a Abin. Sai o veterano Janér Tesch Hosken
Alvarenga, forjado no famigerado Serviço Nacional de Informações, o SNI, um
dos pilares da ditadura civil-militar de 1964-85 – sim, alguns deles ainda
continuam por lá. Em seu lugar, entra o delegado da Polícia Federal
Alexandre Ramagem Rodrigues, cuja principal credencial é ter sido
coordenador da segurança pessoal do então candidato Jair Bolsonaro após o
atentado a faca em Juiz de Fora (MG) em setembro de 2018.
Em tempos de fraquejada no estado democrático de direito e de intervenção
no cenário político por parte de aparatos estatais das áreas de defesa e de
segurança pública, a Abin ganha um caráter ainda mais estratégico no
organograma do Estado. Ninguém que trabalha no órgão gosta que se diga, mas
ele é o serviço secreto. Resultado de uma transição democrática que começou
em 1985 e se perdeu no caminho, o órgão é uma aberração institucional: a
rigor, é civil, mas está subordinado aos generais do Gabinete de Segurança
Institucional, o GSI (a nova nomenclatura do velho Gabinete Militar). Atua
tanto no campo interno quanto no campo externo, um raio de ação gigantesco,
coisa impensável nos congêneres de países como Estados Unidos, Inglaterra,
França e Alemanha.
E, como é da natureza dos serviços secretos em todo o mundo, a Abin se move
nas sombras e por caminhos clandestinos (e praticamente sem fiscalização
externa).
Nascida de uma costela do Exército em 1956, quando a Guerra Fria começava a
entrar em um de seus momentos mais tensos, o serviço secreto civil do
Brasil sempre foi tangido pelos militares. A partir de 1994, quando o
ingresso no quadro funcional da Abin passou a ser feito exclusivamente por
meio de concurso público, surgiu uma nova ala, a dos concursados,
majoritariamente civil. Aos poucos, essa ala ganhou alguma força interna,
porém até hoje não conseguiu conquistar a direção do órgão, como é sua
aspiração.
Militares e concursados abancados na Abin atuam em canais próprios e com
interesses muitas vezes divergentes, mas sempre se uniram para sabotar os
indicados a diretor-geral do órgão que eram estranhos no ninho. Que o digam
Mauro Marcelo de Lima e Silva (delegado da Polícia Civil de São Paulo) e
Paulo Lacerda (delegado da Polícia Federal aposentado), até hoje os dois
únicos forasteiros que comandaram a Abin, ambos no governo Lula, e que
foram demitidos em meio a crises estimuladas artificialmente pelo próprio
serviço secreto.
Não é de se estranhar, portanto, conforme apurei, que militares e
concursados do condomínio Abin/GSI não tenham gostado de saber que
Bolsonaro colocará um delegado da Polícia Federal no comando do serviço
secreto.
O presidente certamente sabe do vespeiro em que pode se meter, mas está
decidido a ir em frente por um motivo simples: ele acredita que o delegado
Rodrigues, até poucos meses atrás responsável por sua segurança pessoal, é
o homem mais indicado para protegê-lo da potencial força desestabilizadora
do serviço secreto. Uma estratégia arriscada, bem ao estilo Bolsonaro.
O presidente pisa em terreno movediço conforme sugere o histórico dos casos
de mandatários sabotados pelos serviços secretos. Juscelino Kubitschek, que
criou o serviço secreto civil em 1956 (na época, a repartição respondia
pela sigla SFICI, Serviço Federal de Informações e Contra-informação), teve
seus telefones sistematicamente grampeados pelo órgão a partir de 1961.
Quando o ditador Ernesto Geisel demitiu o radical comandante do Exército
Sílvio Frota, em 1977, uma ala do Centro de Informações do Exército, o CIE,
cogitou atacar o Palácio do Planalto e chegou a produzir 300 coquetéis
molotov.
A ruína moral e política do governo do general João Baptista Figueiredo
começou em 1981, quando agentes do CIE e do SNI se meteram no frustrado
atentado do Riocentro. Em 1984, o serviço secreto do Exército acionou cinco
de seus agentes (Monstrengo, Pavão, Pudim, Zé Gatão e Marcão) para armar
uma operação de sabotagem da candidatura presidencial de Tancredo Neves no
Colégio Eleitoral. Quatorze anos depois, o então presidente Fernando
Henrique Cardoso se enrolou no caso do grampo do BNDES, quando agentes da
seção fluminense da SSI (Subsecretaria de Inteligência, antecessor da Abin)
grampearam clandestinamente uma conversa telefônica em que FHC e o
presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, André
Lara Resende, faziam acertos nada republicanos em torno da venda da
Telebrás (na maior privatização realizada até hoje no Brasil, a empresa foi
queimada por R$ 22 bilhões, em preço da época).
Já o primeiro escândalo do governo Lula também contou com o envolvimento
dos serviços secretos: em 2003, Waldomiro Diniz, assessor da Casa Civil
ligado ao então todo-poderoso ministro da pasta, José Dirceu, foi flagrado
por câmeras ocultas em duas ocasiões embaraçosas. Na primeira, pedia
propina a um bicheiro; na outra, fazia uma suspeita troca de valises no
saguão do aeroporto de Brasília. Os vídeos, providencialmente vazados na
imprensa, tinham sido produzidos numa operação da qual haviam participado
um informante da Abin e um agente do serviço secreto da Aeronáutica.
A opção de Bolsonaro por botar seu guarda-costas-chefe na direção da Abin
pode não ter o efeito esperado, já que o órgão continuará subordinado ao
GSI – leia-se, ao general quatro estrelas Augusto Heleno Ribeiro Pereira.
Curiosamente, Heleno é um dos poucos militares da cúpula do governo que
ainda não se pronunciaram publicamente sobre a disputa escatológica travada
pelo escritor Olavo de Carvalho contra a ala militar do Planalto. Carvalho,
que prega aos berros o fim da suposta tutela militar sobre o presidente – e
o faz com o apoio de Jair, Eduardo e Carlos Bolsonaro – já foi peitado
pelos generais Hamilton Mourão (vice-presidente), Carlos Alberto dos Santos
Cruz (Secretaria de Governo) e Eduardo Villas Bôas (atual assessor do GSI e
ex-comandante do Exército). Heleno, contudo, está calado. Por enquanto.
Caso decidam abrir seu saco de maldades contra Bolsonaro, os militares não
contam apenas com a Abin, mas também com os três serviços secretos
militares, o Centro de Inteligência da Marinha, o Centro de Inteligência do
Exército e o Centro de Inteligência da Aeronáutica. Não seria uma atitude
inédita o uso dos serviços secretos militares em ações clandestinas para
influir no cenário político em meio a crises. Isso já ocorreu diversas
vezes no período pós-ditadura, e não é preciso ir muito longe para citar um
caso.
Em 2016, o CIE infiltrou o capitão Willian Pina Botelho em movimentos populares que
lutavam contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Fazendo-se
passar por ativista, o agente, sob o falso cognome de Balta Nunes,
conquistou a confiança de organizadores de protestos de rua e passou a
atuar como espião. Por obra do acaso, o militar infiltrado acabou
desmascarado num ato anti-impeachment realizado na avenida Paulista, em São
Paulo, em setembro daquele ano.
A cúpula do Exército, contudo, não se encabulou. Três meses depois do
episódio, mesmo sendo investigado pelo Ministério Público por conta de sua
conduta como espião de movimentos sociais, o agente foi promovido a major
por ninguém menos que o próprio comandante do Exército na época, Eduardo
Villas Bôas – sim, ele mesmo, o general que hoje está lotado no GSI e que
trava a batalha pública contra o ideólogo bolsonarista Olavo de Carvalho.
Ao rifar os generais que lhe deram suporte para chegar ao Palácio do
Planalto, o presidente parece desconhecer os calcanhares de Aquiles que ele
e sua família têm (uma carreira militar salpicada de casos mal explicados, a relação de proximidade com milicianos, uma penca de funcionários fantasmas em gabinetes parlamentares,
os “rolos” financeiros milionários do faz-tudo Fabricio
Queiroz, a malha subterrânea que opera fake news nas redes sociais
etc.). Com a estrutura, o know-how e os contatos que têm, não seria difícil
para agentes da Abin ou dos serviços secretos militares levantarem
informações que, nas mãos certas, poderiam ser desastrosas para Bolsonaro.
Alheio a tudo, o presidente permanece botando pressão nos militares
entrincheirados na Praça dos Três Poderes e na Esplanada dos Ministérios.
Morde muito, mas de vez em quando assopra. No início do mês, ao baixar o
polêmico decreto que facilita o porte de armas, Bolsonaro incluiu a Abin na
relação de órgãos cujos funcionários contarão com facilidades para andar
com revólveres na cintura, uma demanda antiga dos agentes. Na prática, eles
não precisam disso. Com apenas uma chave de fenda e os contatos certos,
eles já podem causar um bom estrago.
[Ilustração: Goya]
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