08 julho 2019

Seleção feminina


Jogue como uma garota
Cícero Belmar

A ligação de afetividade do brasileiro com a Seleção não vai bem desde a (que vergonha!) surra da Alemanha por sete a um. Antes, era uma paixão inquestionável, cultivada e acentuada pelos meios de comunicação, mas que virou dano emocional capaz de levar ao internamento psiquiátrico. Pois não é que aquele amor fofinho renasceu, de forma inesperada, no mês passado, às vésperas de completar cinco anos da desilusão infame?
Na verdade, aquele amor ainda não voltou. Está quase. E não é por causa dos rapazes estrelados, mas de competência duvidosa. A responsável pela façanha é a Seleção Feminina. Nos dias em que as brasileiras entravam em campo, pela Copa do Mundo Feminina, era possível ver muita gente se reunindo para assistir aos jogos, externando os seus sentimentos diante de um aparelho de televisão, gritando palavrão, incentivando, pedindo a Deus uma ajudinha, xingando a pôrra do juiz. Aliás, da juíza.
Para ver as meninas jogando, houve empresas que liberou funcionários do expediente. Os bares aumentaram as vendas de cerveja e fizeram promoções com telões. Só não vi lojas de roupas vendendo camisas verdes e amarelas porque essas estão desgastadas demais da conta. (E isso já é outro assunto). No mais, foi tudo igual às Copas masculinas.
Tudo bem, a gente já sabe que desta vez não deu para a Seleção Feminina. As garotas perderam para as francesas, numa prorrogação, no dia 24. Mas, jogaram como guerreiras. Logo elas, que vieram das periferias, dos campos improvisados, da falta de incentivo e de investimentos. Logo elas, que sofreram horrores  para se profissionalizar, que foram tratadas como atletas amadoras por muito tempo, que foram vítimas de preconceito. Logo elas, arrebentaram.
A onda de apoio por parte da torcida foi tão bacana que, mesmo com a desclassificação do time, não se ouviu grosserias. Pelo contrário, um orgulho danado. Foram recebidas, inclusive, com festa de torcida no aeroporto, na volta ao Brasil. O que se observou foi uma mudança de comportamento. As jogadoras foram tratadas com respeito, o brasileiro passou por cima de um ultrapassado discurso babaca de gênero. E essa foi uma vitória.
A outra vitória é que a Copa do Mundo jogou holofotes, no Brasil, na modalidade futebol feminino, quebrando resistência de uns trogloditas que ainda teimavam em achar que futebol era exclusivo de homem. (De homem! De homem! Eu sei qual é o homem!) Portanto, o torneio foi um avanço, considerando que esse é um país machista deitado em berço esplêndido. As meninas provaram que jogam melhor que muitos… machos que vivem caindo no gramado por qualquer empurrãozinho.
Ostentaram competência sem deixar de usar batom. Quebraram dogmas. Marta  passou a ser a maior goleadora de todas as Copas. Nenhum homem, em tempo algum, chegou a esse ponto. É pouco ou quer mais curiosidades? A velocidade de Debinha lembrou o craque Garrincha. Formiga bateu o recorde em participações no torneio e Cristiane quase alcança Pelé na artilharia. As defesas de Bárbara nos fizeram acreditar que o futebol espetáculo estava de volta. Os dribles de Tamires deveriam servir de oficina para o pessoal do futebol masculino.
Eu acho que as jogadoras desta Seleção, além de terem contribuído e muito para a popularização da modalidade no Brasil, foram as grandes manifestantes do movimento feminista neste 2019. A equipe bem que merece receber uma medalha de Honra ao Mérito no próximo 8 de Março. Num país onde muitas mulheres ainda são humilhadas, discriminadas, espancadas e mortas somente por serem mulheres, as jogadoras nos obrigam a olhá-las de frente, e com respeito. A elas e a todas as mulheres.
Claro que não vai acontecer uma revolução por causa da Copa do Mundo Feminino. E nem os homens deixarão de ser machistas só porque nossas jogadoras honraram a camisa, com raça e graça. Mas o fato é que as jogadoras, indiretamente, deram inquestionável contribuição para o debate feminista.
Sem dizer uma palavra de ordem, sem verbalizar uma crítica ao sistema de dominação masculino, elas mostraram que são iguais a homens (ou melhores), inclusive quando estão com uma bola no pé. E querem ser tratadas com igualdade. Até por que feminismo, sabemos bem, é um processo.
Processo longo, diga-se de passagem. E que depende de atitudes.
No campeonato contra o machismo, infelizmente, elas ainda estão em desvantagem. Terão que suar muita camisa porque há muito jogo pela frente. Mas, reconhecer a grandeza delas já é um bom começo.
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Cícero Belmar é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Pernambucano, mora no Recife. Já ganhou duas vezes o Prêmio Literário Lucilo Varejão, da Fundação de Cultura da Prefeitura do Recife; e outras duas vezes o Prêmio de Ficção da Academia Pernambucana de Letras. É membro da Academia Pernambucana de Letras. Email: belmar2001@gmail.com; Instagram: @cicerobelmar. Na RUBEM, escreve quinzenalmente às segundas-feiras. 

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