Indecifrável
Luciano Siqueira
Tudo nela me parecia inexpressivo: o rosto meio que de criança, nenhuma maquiagem, rala emoção, o jeito de caminhar pelo corredor da aeronave como que pisando em ovos, nenhum sorriso, um gesto sequer que traduzisse interesse por algo ou alguém.
Luciano Siqueira
Tudo nela me parecia inexpressivo: o rosto meio que de criança, nenhuma maquiagem, rala emoção, o jeito de caminhar pelo corredor da aeronave como que pisando em ovos, nenhum sorriso, um gesto sequer que traduzisse interesse por algo ou alguém.
O modo
de vestir (ao meu olhar) desconcertantemente adolescente, em contraste com a
aparência de talvez entre trinta e cinco a quarenta anos.
Passou
por mim umas cinco vezes durante o voo de não mais do que duas horas e meia. Ia
ao fundo conversar rapidamente com o pessoal de bordo: alguma confidência,
pedido especial, queixa?
Impossível
decifrar aquele rosto simpático, mas sem vida.
Viajava
aparentemente só, pois em nenhum instante trocara uma palavra sequer com seus
vizinhos de assento.
Por um
breve instante, uma criança de quem sabe uns cinco anos ensaiou uma brincadeira
quando se cruzaram no corredor, mas ela se manteve passiva, em silêncio, monarquicamente
tímida.
Sequer
pude imaginar a sua nacionalidade. No voo, além de brasileiros, africanos e
europeus — barulhentos italianos, circunspectos alemães e alguns outros
provavelmente portugueses e espanhóis.
Restou-me
silenciosa solidariedade: recatada ao excesso, bem sei por experiência própria
o quanto sofre; se angustiada, torço para que esteja indo ao encontro de alguém
que a ouça e lhe dê forças...
Assim é
a vida em nossos dias, já não se diz o que se sente e se pensa, olhos nos olhos
— ou num breve diálogo com desconhecidos em ambiente comum.
Outro
dia me chamou a atenção o silêncio quase reverente numa sala de espera da
clínica oftalmológica. Até que tentei puxar assunto, mas as pessoas mais
próximas preferiram permanecer de olho na TV, vendo um desses programas matinais
anódinos e desprezíveis da Rede Globo.
Assim,
nada mais natural que uma européia tímida e circunspecta tenha circulado pelo
avião impassível e indecifrável.
[Ilustração: João Alexandrino]
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