Sociedade incivil e
barbárie
Muniz Sodré, na
Folha de S. Paulo
A distopia televisiva “Years and
Years” (HBO), onde o mundo parece posto de cabeça para baixo, é
amostra curiosa de um fenômeno ainda em busca de interpretação, que escolhemos
designar como sociedade incivil. Não se trata de mera oposição entre
incivilidade e civilização, e sim de uma nova forma social, que emerge de norte
a sul do planeta, com especial destaque no Brasil.
Para maior clareza teórica, um bom ponto de partida é a
suposição de um “comum” inerente a toda atividade humana. Transparece na
expressão sociedade civil que, já em meados do século 18, se opunha à noção de
indivíduo isolado. A palavra “civil” (civis, cidadão) conota a ideia do homem
desvinculado de uma função estatal, mais especificamente de uma obrigação
militar. Civil é o cidadão “privado” dessa constrição. O termo mantém, em suas
reinterpretações históricas, a tensão da diferença entre Estado e povo.
Antecedido por pensadores importantes, Antonio Gramsci concebe
a sociedade civil como uma totalidade onde se desenrolam as lutas de classes.
Isto aqui é, claro, facilitação de uma temática complexa. Mas no que chama de
“Estado ampliado”, Gramsci distingue sociedade política (fonte das ações
submetidas pela força do Estado ao controle constitucional ou legal) de
sociedade civil, entendida como a base social das formas concretas de
organização das visões de mundo, de sociabilidade e de cultura, onde se travam
as lutas por hegemonia, isto é, pela força consensual de convencimento ou de
imposição ideológica. Atividade política implica luta pelo governo fundado no
consenso.
Um regime dito democrático costuma desenvolver-se num contexto de sociedade
política e de sociedade civil. Democracia não é conceito de poucas palavras.
Duas, porém, como liberdade de expressão e civilismo (negociação pública de
diferenças, cooperação, solidariedade, discernimento crítico e amizade cívica
ou “phylia”) compõem a ideia que o senso comum faz do funcionamento democrático
da vida social.
Seria possível acrescentar a elas a palavra “comunicação”? A
segunda metade do século 20 jogou com essa possibilidade, apostando em
informação e seus desdobramentos tecnológicos como o solo natural de
desenvolvimento das aptidões humanas para convivência e comunhão. O século
corrente, porém, trouxe à luz reservas teóricas e práticas à presumida
transitividade cultural da liberdade de expressão, isto é, à suposição de que o
alargamento técnico dos meios, o aumento da transparência social e a
reciprocidade comunicativa fossem capazes de dinamizar os focos gerativos de
cultura.
Em meio à notável expansão tecnológica, é crescente o déficit
humano de compreensão mútua. Embalado pela imensa liberação expressiva
propiciada pela rede eletrônica, o senso comum abandona-se ao êxtase da fala
instantânea, ou seja, à ação biológica e mecânica do aparelho fonador, típica
do psitacismo (fala do papagaio) ou do robô.
Enquanto isso, a hegemonia do capitalismo financeiro, da cultura
algorítmica e do biopoder tecnológico sufoca a sociedade civil, criando um
vácuo institucional. No vazio da substância ético-política, não há nada a se
ordenar ou gerir. O improvável é cada vez mais possível. É isso que dá margem à
emergência da sociedade incivil, um ordenamento humano regido por tecnologias
de comunicação e solidário à desestabilização das formas consensuais de
representação do mundo.
Nesse horizonte, desponta o espectro do fascismo ou do
neofascismo. Preferimos a ideia de um “protofascismo”. A este falta a
convicção que ainda vestia partidariamente o fascismo clássico, mas lhe sobra
angústia: é um inquietante tropeção no fio transformador da história. Não é
mais uma ideologia com alguma coerência capitaneada por um partido com o
beneplácito do Estado, e sim um produto do ressentimento social estimulado pelo
conhecimento zero da história (sim, ignorância é mesmo força, como insinua George Orwell em
"1984") e pela energia do descontentamento ante a crise do emprego,
as transformações dos costumes, a corrupção política, o sentimento de declínio
nacional.
Nos países ditos emergentes, a degradação social, alimentada por
frações da velha democracia burguesa (elites predatórias ou indiferentes ao
destino territorial), incita continuamente os estratos médios e baixos das
classes sociais à produção do ódio como reação sistêmica à dinâmica
progressista dos movimentos coletivos. Ontem como hoje, a situação fascista
reflete o medo coletivo —logo, uma paixão política negativa— diante de
transformações e passagens aceleradas, como bem transparece numa formulação de
Gramsci: “O velho mundo morre, o novo mundo demora a aparecer, e no
claro-escuro surgem os monstros” (“Cadernos do Cárcere”, 3/184).
Assim como o espetáculo já pôde ser identificado
como a forma-mercadoria acabada, a rede eletrônica é o atual acabamento formal
da realidade paralela (o bios virtual) paulatinamente construída pelas
organizações de mídia desde meados do século 20, em conjunção com as abstrações
inerentes ao capitalismo financeiro. Nessa virtualidade paralela, antigas
diferenças constitutivas da sociabilidade (por exemplo, a diferença entre
critérios de verdade e de mentira) desaparecem em favor de uma discursividade
amorfa, mais emocional do que argumentativa.
Em resumo, onde se desconstroem os laços
representativos entre povo e Estado, sociedade incivil é a depressão política
que, muito além do binarismo esquerda/direita (tão caro às turmas do “eles
contra nós”), pode irromper como fratura, sociopatia e gozo com o desastre
alheio.
Daí o fascínio odiento por ofensa, violência e armas.
Daí o “improvável possível”, desde absurdos regressivos como um Estado
teocrático-miliciano (por que não?) até a barbárie como horizonte de vida.
Muniz
Sodré - Escritor
e professor emérito da UFRJ
[Ilustração: O Globo]
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