10 novembro 2019

Impasse civilizatório


Sociedade incivil e barbárie
Muniz Sodré, na Folha de S. Paulo

A distopia televisiva “Years and Years” (HBO), onde o mundo parece posto de cabeça para baixo, é amostra curiosa de um fenômeno ainda em busca de interpretação, que escolhemos designar como sociedade incivil. Não se trata de mera oposição entre incivilidade e civilização, e sim de uma nova forma social, que emerge de norte a sul do planeta, com especial destaque no Brasil.
Para maior clareza teórica, um bom ponto de partida é a suposição de um “comum” inerente a toda atividade humana. Transparece na expressão sociedade civil que, já em meados do século 18, se opunha à noção de indivíduo isolado. A palavra “civil” (civis, cidadão) conota a ideia do homem desvinculado de uma função estatal, mais especificamente de uma obrigação militar. Civil é o cidadão “privado” dessa constrição. O termo mantém, em suas reinterpretações históricas, a tensão da diferença entre Estado e povo.
Antecedido por pensadores importantes, Antonio Gramsci concebe a sociedade civil como uma totalidade onde se desenrolam as lutas de classes. Isto aqui é, claro, facilitação de uma temática complexa. Mas no que chama de “Estado ampliado”, Gramsci distingue sociedade política (fonte das ações submetidas pela força do Estado ao controle constitucional ou legal) de sociedade civil, entendida como a base social das formas concretas de organização das visões de mundo, de sociabilidade e de cultura, onde se travam as lutas por hegemonia, isto é, pela força consensual de convencimento ou de imposição ideológica. Atividade política implica luta pelo governo fundado no consenso.
Um regime dito democrático costuma desenvolver-se num contexto de sociedade política e de sociedade civil. Democracia não é conceito de poucas palavras. Duas, porém, como liberdade de expressão e civilismo (negociação pública de diferenças, cooperação, solidariedade, discernimento crítico e amizade cívica ou “phylia”) compõem a ideia que o senso comum faz do funcionamento democrático da vida social. 
Seria possível acrescentar a elas a palavra “comunicação”? A segunda metade do século 20 jogou com essa possibilidade, apostando em informação e seus desdobramentos tecnológicos como o solo natural de desenvolvimento das aptidões humanas para convivência e comunhão. O século corrente, porém, trouxe à luz reservas teóricas e práticas à presumida transitividade cultural da liberdade de expressão, isto é, à suposição de que o alargamento técnico dos meios, o aumento da transparência social e a reciprocidade comunicativa fossem capazes de dinamizar os focos gerativos de cultura. 
Em meio à notável expansão tecnológica, é crescente o déficit humano de compreensão mútua. Embalado pela imensa liberação expressiva propiciada pela rede eletrônica, o senso comum abandona-se ao êxtase da fala instantânea, ou seja, à ação biológica e mecânica do aparelho fonador, típica do psitacismo (fala do papagaio) ou do robô.
Enquanto isso, a hegemonia do capitalismo financeiro, da cultura algorítmica e do biopoder tecnológico sufoca a sociedade civil, criando um vácuo institucional. No vazio da substância ético-política, não há nada a se ordenar ou gerir. O improvável é cada vez mais possível. É isso que dá margem à emergência da sociedade incivil, um ordenamento humano regido por tecnologias de comunicação e solidário à desestabilização das formas consensuais de representação do mundo. 
Nesse horizonte, desponta o espectro do fascismo ou do neofascismo. Preferimos a ideia de um “protofascismo”. A este falta a convicção que ainda vestia partidariamente o fascismo clássico, mas lhe sobra angústia: é um inquietante tropeção no fio transformador da história. Não é mais uma ideologia com alguma coerência capitaneada por um partido com o beneplácito do Estado, e sim um produto do ressentimento social estimulado pelo conhecimento zero da história (sim, ignorância é mesmo força, como insinua George Orwell em "1984") e pela energia do descontentamento ante a crise do emprego, as transformações dos costumes, a corrupção política, o sentimento de declínio nacional. 
Nos países ditos emergentes, a degradação social, alimentada por frações da velha democracia burguesa (elites predatórias ou indiferentes ao destino territorial), incita continuamente os estratos médios e baixos das classes sociais à produção do ódio como reação sistêmica à dinâmica progressista dos movimentos coletivos. Ontem como hoje, a situação fascista reflete o medo coletivo —logo, uma paixão política negativa— diante de transformações e passagens aceleradas, como bem transparece numa formulação de Gramsci: “O velho mundo morre, o novo mundo demora a aparecer, e no claro-escuro surgem os monstros” (“Cadernos do Cárcere”, 3/184).
Assim como o espetáculo já pôde ser identificado como a forma-mercadoria acabada, a rede eletrônica é o atual acabamento formal da realidade paralela (o bios virtual) paulatinamente construída pelas organizações de mídia desde meados do século 20, em conjunção com as abstrações inerentes ao capitalismo financeiro. Nessa virtualidade paralela, antigas diferenças constitutivas da sociabilidade (por exemplo, a diferença entre critérios de verdade e de mentira) desaparecem em favor de uma discursividade amorfa, mais emocional do que argumentativa.
Em resumo, onde se desconstroem os laços representativos entre povo e Estado, sociedade incivil é a depressão política que, muito além do binarismo esquerda/direita (tão caro às turmas do “eles contra nós”), pode irromper como fratura, sociopatia e gozo com o desastre alheio. 
Daí o fascínio odiento por ofensa, violência e armas. Daí o “improvável possível”, desde absurdos regressivos como um Estado teocrático-miliciano (por que não?) até a barbárie como horizonte de vida.
Muniz Sodré - Escritor e professor emérito da UFRJ
[Ilustração: O Globo]
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