Brasil abandona autonomia ao apoiar EUA na crise com Irã
Ao manifestar apoio aos EUA após
ataque que matou poderoso general iraniano, Itamaraty deixou de lado tradição
pacífica, e Brasil pode sofrer consequências econômicas e diplomáticas, avaliam
especialistas.
Portal Vermelho
Após o recente ataque dos Estados
Unidos que resultou na morte do principal comandante militar iraniano,
Qassim Soleimani, o Brasil adotou um posicionamento alinhado a Washington,
visto por analistas ouvidos pela DW Brasil como um abandono inédito da
autonomia do país.
Em
nota comentando as ações americanas, o Itamaraty manifestou “apoio à luta
contra o flagelo do terrorismo”. Nesta segunda-feira (06/01), o
Irã convocou uma representante da embaixada do Brasil em Teerã para
dar explicações sobre o texto.
De
acordo com Guilherme Casarões, professor de Ciência Política da Escola de
Administração da Fundação Getúlio Vargas (FGV), mesmo nos momentos de lua
de mel do governo brasileiro com os Estados Unidos, o país nunca havia deixado
de se posicionar de forma independente.
Na
mesma linha, o ex-Ministro das Relações Exteriores e da Defesa Celso Amorim
aponta que o Brasil tem uma tradição pacifica de resolução de conflitos e
tratados internacionais, mesmo antes da redemocratização. “É preciso ir
muito longe na história para ver ações que não foram dessa natureza”,
diz.
O
comunicado do Itamaraty foi considerado preocupante por apoiar não apenas aos
Estados Unidos, mas também uma ação que pode ser questionada do ponto de vista
do direito internacional. “Soleimani não era um Bin Laden, não se trata de um
movimento clandestino”, aponta Amorim.
Para
Casarões e Amorim, os Estados Unidos cruzaram uma linha importante ao
matar alguém ligado a um Estado. O presidente americano, Donald Trump, afirmou
que ordenou o ataque que resultou na morte do general, que era comandante da
poderosa Força Quds da Guarda Revolucionária do Irã, para parar uma
guerra e não para começar uma. Sem apresentar qualquer tipo de prova,
Trump afirmou que Soleimani estava planejando “ataques iminentes” contra
militares e diplomatas americanos.
Casarões
afirma que o Itamaraty acabou endossando a argumentação dos Estados Unidos,
contrariando sua tradição de ser fiel ao direito internacional.
Para
Amorim, em situações normais, o ataque americano deveria levar a “uma
condenação por parte do Brasil, ou, no mínimo, a uma manifestação de preocupação,
como fez a Argentina”. “Agora, o que estamos fazendo é o oposto, estamos
aceitando a explicação americana, sem nenhuma justificativa”, diz.
Rompimento de histórico de
cordialidade
O
histórico de relações entre Brasil e Irã é de cordialidade. Em 2010, o Brasil,
junto à Turquia e sob a batuta de Amorim, mediou uma primeira versão de um
acordo nuclear com o Irã. Uma versão definitiva acabou saindo apenas em 2015,
no governo Barack Obama, e foi abandonada unilateralmente por Trump em maio de
2018.
Casarões
avalia que, desde o início do governo do presidente Jair Bolsonaro, houve
indícios de um posicionamento contrário ao Irã. “O Brasil já vinha provocando
com a ideia da embaixada em Jerusalém, depois Eduardo Bolsonaro falou que
queria considerar o Hisbolah [grupo libanês apoiado pelo Irã] um grupo
terrorista, sendo que o Brasil tem uma posição de só chamar de grupo terrorista
aqueles que são assim denominados pela ONU”, observa.
Em
outro episódio, em meados do ano passado, duas embarcações iranianas ficaram 50 dias aguardando
abastecimento da Petrobras no porto de Paranaguá. A estatal se
negava a fornecer combustível sob o argumento de que os navios pertenciam a
companhias alvos de sanções por parte dos Estados Unidos e que a empresa
poderia sofrer penalidades. O caso acabou no Supremo Tribunal Federal (STF),
que decidiu a favor das empresas donas das embarcações.
Consequências econômicas e
diplomáticas
Há
duas preocupações básicas em relação ao discurso anti-Teerã adotado pelo
Brasil. A primeira é um possível impacto comercial. Embora tenha comprado
apenas cerca de 2,2 bilhões de dólares em produtos brasileiros de um total de
224 bilhões de dólares exportados em 2019, o Irã é importante para setores
específicos. É, por exemplo, o segundo maior comprador de milho do país e o
sexto maior de carne bovina congelada.
Outra
inquietação manifestada pelos analistas ouvidos pela DW Brasil é alguma
possível retaliação diplomática. Para um país que está completamente distante
do conflito, avalia Casarões, essa posição pode ser muito danosa.
“Não
quero ser alarmista, mas já há precedentes de atentados, como aquele da
Associação Israelita Argentina”, diz o professor, referindo-se ao ataque
à Associação Mutual Israelita Argentina, ocorrido em Buenos Aires em 1994
e que deixou 85 mortos. O governo do Irã foi formalmente acusado pela Justiça
argentina. de planejar o bombardeio.
Além
disso, aponta-se para uma ausência de ganhos evidentes do Brasil ao se associar
com os Estados Unidos. “Esse posicionamento faria todo o sentido se isso
rendesse dividendos imediatos, e a gente tem visto que não tem acontecido: os
EUA não estão muito dispostos a ampliar a OCDE [Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Económico ou Econômico], demandaram diversas concessões na OMC
[Organização Mundial do Comércio], e o Brasil acaba sendo visto como um país
que perde autonomia”, afirma o professor de política internacional da
Universidade Veiga de Almeida Tanguy Baghdadi. “Não vão negociar conosco se
acharem que o Brasil só segue a política externa dos EUA.”
Encontro no Brasil
Para
os analistas ouvidos pela DW Brasil, a situação do Brasil pode se tornar mais
delicada após o país sediar um encontro de um grupo de trabalho do chamado
Processo de Varsóvia, agendado para os dias 5 e 6 de fevereiro em Brasília.
O
Processo de Varsóvia foi lançado há cerca de um ano pelos governos dos Estados
Unidos e da Polônia e reúne grupos de trabalho, com representantes de vários
países e organizações, para endereçar questões relativas à segurança no Oriente
Médio.
Oficialmente,
o Itamaraty diz que o evento em fevereiro será um “encontro técnico” e
afirma que “o Brasil aceitou um convite dos EUA e Polônia para contribuir com o
processo de Varsóvia em vertente voltada para temas humanitários” no Oriente
Médio.
“É
uma tentativa de discutir a questão iraniana sem a presença de Teerã”, comenta
Baghdadi. “No momento de maior tensão desde 1979, isso vai acontecer aqui no
Brasil, e isso sim pode associar o Brasil a uma posição de não neutralidade”,
afirma, ressaltando que o fato de o país sediar o evento pode acabar
demonstrando um viés diplomático. Amorim, por sua vez, considera que o evento
pode criar um constrangimento para o país.
[Ilustração: LS]
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