06 março 2020

A palavra de Cícero Belmar


O que se vê não é o que se vê

Cícero Belmar*, no site Rubem – revista da crônica

 

Eu vi um vídeo fake e ele era perfeito. As imagens, reais; mas a edição, manipulada. O original proveio de um show do The Beatles, num daqueles concertos que arrasavam quarteirões. O material que circula pelo  WhatsApp, no entanto, mostra a banda inglesa cantando trechos de sucessos do grupo de axé É o Tchan.
Se não souber que a edição é enganosa, não há quem diga que aquilo não ocorreu. Só que o show foi em meados da década de 1970 e o Tchan gravou os pagodões 20 anos depois. Mas a guitarra de John Lennon parece tocar cada acorde e você vê o dedo do músico, nas cordas, executando a harmonia.
O mesmo acontece com o movimento labial. Paul McCartney diz cada sílaba da letra: “Abra a roda e deixa ela entrar”, levando a plateia ao delírio. Há outra cena em que John e Paul dividem o microfone e você vê objetivamente os dois cantarem: “Pega no bumbum, pega no compasso”.
Em seguida, o vídeo mostra George Harrison arrasando num solo e Ringo Starr conclui ditando o ritmo para os vocais: “Segura o Tchan, amarra o Tchan”. Tudo no momento matemático. O editor do material conseguiu, através de algum programa de computador, colocar a voz dos músicos. Isso mesmo. O vídeo era convincente não só na expressão dos rostos, na sequência do instrumental, na sincronia do áudio com a imagem, no movimento perfeito do lábio, mas sobretudo as vozes eram parecidíssimas com as de John e de Paul.
Só que os ingleses jamais cantaram os hits da banda baiana. E a cena mesmo sem ter ocorrido passou a existir depois de processada. Olhando o vídeo, você jura que aquilo aconteceu de verdade. Eu sei que o cinema, há muitos, faz isso. Mas me impressionou essa tecnologia que, teoricamente, permite a todos manipular imagens, reproduzir a peça e enviá-la. Se foi possível mandar pelo zap e, antes disso, editar aquele vídeo, muitas montagens podem ser feitas. Muita cena pode ser alterada e refeita, com a recriação da voz da pessoa, inclusive.
O vídeo é preocupante. Se a tecnologia permitiu dar realismo na interpretação de músicas que não estavam no setlist de num show, também poderá viabilizar discursos e confissões fictícias.
Semana passada, o personagem do ator Murilo Benício enfrenta uma situação delicada, na novela Amor de Mãe. O inimigo dele falsifica um vídeo que supostamente o denuncia numa orgia com mulheres. O personagem sofre para provar que nunca esteve naquele lugar que o vídeo mostra. É igual a esse dos Beatles.
Lembrei da política. Se nas eleições presidenciais de 2018, as fake news fizeram o inferno de candidatos e eleitores, muito mais agora. As notícias falsas distribuíram boatos e desinformação pelo impresso, vídeo, rádio e mídias sociais. Mas as fake news parecem brincadeiras infantis diante desses vídeos poderosos.
[Ilustração: Delano D'Ávila]
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