Duas histórias que
traduzem a essência do futebol de raiz
Às vezes,
o que parece errado está certo e o que parece certo está errado
Juca Kfouri,
Folha de S. Paulo
No futebol, às vezes, o que parece errado está certo e o que
parece certo está errado. A história chegou à coluna pelo sociólogo e
jornalista brasileiro Paulo Escobar, contada pelo também jornalista argentino,
de Rosário, Santiago Garat.
Diz assim: Toca e anda. Creio que se chamava Juan.
Aparentava ter 83 anos, e aparecia todas as quartas, às nove da
noite, pontualmente, com a bolsa debaixo do braço. Já vinha vestido.
Geralmente com camisas de
clubes italianos ou espanhóis. Originais e reluzentes. E calção
do Central Córdoba, com o número 5 estampado na coxa direita.
Na bolsa trazia as caneleiras, que colocava meticulosamente
entre as meias. Um pote laranja de pomada anti-inflamatória que espalhava, sem
poupar, em ambas as pernas e na cintura. Um sabão de toucador. Uma toalhinha
daquelas de secar as mãos. E um desodorante Old Spice, o do barquinho.
Olho que corria pau a pau com a gente, que não tínhamos mais de
30 anos.
E sabia bastante com a bola.
Era desses que te pede todas e as devolve redonda. Toca, toca e
anda, ele dizia.
Era uma parede humana, o cara. Naquela noite tive que
enfrentá-lo.
O jogo estava equilibrado, mas sem atritos.
Num momento me encarou confiante com a bola no pé.
Não sei o que fez, mas me obrigou a abrir as pernas e me deu uma
caneta maravilhosa.
E num escanteio pra nós, um tempinho depois, me deu uma
cotovelada no olho.
Não muito forte, mas certeira. Nada é sem querer.
Quando terminamos de tomar banho, enquanto ele secava as bolas
com a toalhinha, perguntou o que tinha me doído mais: a caneta ou a cotovelada?
A cotovelada, respondi.
Se dedica a outra coisa garoto, me disse.
Passou o desodorante e foi".
O PÊNALTI DISTRAÍDO
Brasil e França disputavam as quartas de final da Copa do Mundo de
1986, no estádio Jalisco, de Guadalajara, no México. O empate 1 a 1 em
120 minutos levou aos pênaltis.
Sócrates saiu
do meio de campo a passos lentos para a primeira cobrança.
Na cabine de TV brasileira o comentarista cravou, seguro:
"Nunca vi o Magrão perder um pênalti decisivo".
Pois viu, pela primeira vez.
Pois viu, pela primeira vez.
Viu e criticou o que chamou de displicência do craque ao não
tomar distância para fazer a cobrança.
No dia seguinte, ao ir cobrir o retorno da seleção para o
Brasil, foi chamado pelo Doutor: "Estou decepcionado com você", disse
docemente.
Ouviu de volta: "Pombas, Magro, você jamais agradeceu
nenhum elogio, nem precisava, mas na primeira crítica, reclama?".
Calmamente, o capitão da seleção pôs as duas mãos nos ombros do
jornalista e explicou: "A decepção não é pela crítica, mas porque pensei
que você, me conhecendo tão bem, estranharia eu bater o primeiro pênalti.
Sempre bati o último e nunca perdi, sabe por quê? Porque via
como o goleiro se comportava e quando me encaminhava para a área já sabia o que
fazer. O estádio podia estar lotado, que eu não ouvia nada. Ontem, quando o
Telê me disse para bater primeiro porque o Zico bateria o quinto, pensei que
alguma coisa estava errada. E até chegar à marca do pênalti imaginava o Brasil
inteiro olhando para mim. Bati fraco e perdi. E não por displicência, porque já
vinha batendo assim no Corinthians".
Pura verdade.
Quem perdeu ótima oportunidade foi o comentarista. Já pensou se
ele advertisse antes da cobrança: "Está errado. Nunca vi o Sócrates bater
o primeiro pênalti".
[Da coleção de José Távora}
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