18 abril 2020

Entre a prevenção e o desastre


Tragédia anunciada, o teste da gestão pública
Nádia Campeão, no Blog do Renato

O Brasil está entrando na fase mais dura do Covid-19 e justamente quando a
população e a sociedade deveriam estar concentrados no enfrentamento e na
proteção, esta trazida pelo isolamento social, o que se observa é a ação criminosa,
omissa e descomprometida de parte das autoridades públicas. A maior é a do
presidente da República e do seu governo, exceção do contraditado Ministério da
Saúde , e agora incluído o presidente do Banco Central que disse ser preferível que
o pico da doença e das contaminações ocorra logo, para que a economia também
possa se recuperar logo. Para ele, que falou para um conjunto de investidores, se a
curva fica muito tempo achatada, pior para a recuperação da economia!
Assistimos, comovidos e indignados, o colapso do atendimento em Manaus, a
aceleração rápida da ocupação dos leitos de UTI em todo o país e o avanço dos
casos de contaminação para as áreas populares das periferias. A região da
Brasilândia, bairro popular de São Paulo, onde moram mais de 270 mil pessoas, é
a que registra o maior número de mortos pela epidemia na cidade.
Nestas mesmas regiões, a movimentação nas ruas comerciais é mais intensa, o
isolamento social é baixo e, ainda por cima, formam-se longas filas, por longas
horas, de pessoas tentando resolver pendências de CPF nas poucas unidades da
Receita Federal ou buscando receber o auxílio emergencial nas agências da Caixa
Econômica Federal e Banco do Brasil. É inacreditável: para tentar sobreviver
ficando em casa com alimentação básica, o povo precisa se expor ao risco da
aglomeração na rua.
Temos aqui duas evidências gritantes de desinteresse, desaparelhamento e
insuficiência de gestão pública. Em primeiríssimo lugar, ao ser praticamente forçado
a pagar o auxílio emergencial, o governo federal o faz de forma lenta e burocrática.
Demonstra que não se preparou em momento algum para socorrer a economia
popular. Supôs que os pobres e excluídos do nosso país – gente que perdeu o
emprego e não tem mais esperança em recuperá-lo, os desalentados, os informais
que sobrevivem sem conta bancária nem cartão – teriam situação regular de CPF e
até perante a Justiça Eleitoral! Como se não bastasse, imaginaram que estas
mesmas pessoas teriam facilidade e familiaridade para cadastrar-se por meio digital,
baixar aplicativos, ler uma lista longa de instruções e preencher outra lista de dados.
Chega a ser cínico o comentário de uma autoridade da CEF para uma emissora de
tv, quando perguntado sobre as imensas filas que se formaram: “ mas não precisa
vir nas agências, dá prá fazer tudo por internet… peçam para alguém ajudar”.
O pecado original está no fato de que, na verdade, milhões de brasileiros pobres
voltaram a fazer parte da extrema pobreza, perderam seus empregos, foram
forçadamente para a informalidade, foram morar nas ruas, e, ao mesmo tempo, não
foram aceitos no Bolsa Família e nem mesmo incluídos no Cadastro Único de outros
benefícios. Ou apenas no cadastro como pessoas em situação econômica
vulnerável. Ao invés de orientar para que em todo o país fosse feita uma busca ativa
para cadastramento (como ocorreu nos governos Lula e Dilma), o governo
Bolsonaro paralisou e desestruturou as políticas públicas existentes. Aliás, é só
lembrar os milhares que aguardam concessão das suas aposentadorias. Se já
tivessem recebendo, seria menor o número de pessoas necessitadas do auxílio
emergencial.
Como agora bem está sendo reconhecido, não fôsse a fortaleza construída pelo
SUS, tão criticado e menosprezado pelos neoliberais e defensores do Estado
mínimo, o povo brasileiro estaria totalmente desamparado. O mesmo se pode referir
à educação pública e à ciência brasileira.
O outro aspecto do desastre que atinge os bairros populares é a fraca presença do
poder público municipal, sem instrumentos eficazes de governo local, sem uma rede
de proteção constituída por Defesa Civil, entidades sociais, sindicais e comunitárias,
voluntariado, capaz de agir rápida e organizadamente em situações extremas. E
situações extremas não tem faltado nos últimos anos, desde as chuvas e enchentes
recorrentes, rompimentos de barragens, poluição de óleo no litoral, epidemias como
dengue, zika, chikungunya e agora a Covid-19. Nossas cidades não têm resiliência,
a sociedade não está preparada para pensar e agir coletivamente, os mecanismos
de solidariedade surgem de forma espontânea e desarticulada.
Se houvesse governo local fortalecido, haveria de organizar uma porta de entrada
única para as doações, um voluntariado selecionado e protegido para organizá-las e
fazer as entregas, para auxiliar as pessoas nas suas casas a realizar os cadastros
necessários, para preparar locais de apoio que possam receber pessoas
contagiadas que não tem condições de fazer o isolamento nas suas casas.
Os hospitais de campanha já deveriam estar sendo montados, inclusive com o
recurso ao trabalho das Forças Armadas que já ajudaram na epidemia da dengue,
próximos ou dentro destas comunidades.
Alguns exemplos meritórios estão sendo liderados por entidades comunitárias,
como em Heliópolis e Paraisópolis em São Paulo, em comunidades do Rio de
Janeiro, e por prefeitos que compreendem a tempo a enorme responsabilidade que
está sob sua gestão, como talvez nunca tenham enfrentado antes.
Mas é doloroso constatar que o que está sendo feito até agora é muito pouco para
conseguir impedir o sofrimento e as perdas irreparáveis de pessoas queridas. Os
governantes que não souberam ou não quiseram cumprir seu papel de principal
artífice do combate ao Covid-19 e suas consequências, serão cobrados duramente.
[Ilustração: Joaquim Torres Garcia]

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