17 maio 2020

A vida de viva voz


Alô!? Bom ouvir sua voz
Cícero Belmar, na Revista Rubem


Pego o celular para mandar uma mensagem, mas em vez de um texto curto, ou de voz, faço a ligação. Ainda bem que mudei de ideia. Minha amiga atende e nós terminamos falando mais do que poderíamos supor. O que eu iria disparar de forma sucinta, virou um papo animado, rimos e constatamos, no final da ligação, que, se tivéssemos resolvido o assunto pelo WhatsApp, perderíamos o prazer daquele contato.
Nunca mais tínhamos conversado. Mesmo antes do distanciamento social, imposto pela pandemia, só nos comunicávamos pelas mensagens. Agora, em casa, estamos com mais tempo e isso está permitindo, pelo menos para mim, voltar a um hábito que deixara no passado (remoto?): ligar para os amigos. Até um mês atrás, correndo muito, como todo mundo, eu optava pelo mais prático quando precisava resolver alguma coisa pelo telefone.
Além dessa justificativa de ganhar tempo, eu achava que mandar uma mensagem de texto era menos invasivo e, com certeza, não atrapalharia a pessoa amiga que estivesse do outro lado da linha. Telefonar, mesmo, era uma opção para o extremamente necessário.
Nessa ligação para a amiga, descobri uma coisa curiosa: mesmo antes deste momento atual, nós já vivíamos numa espécie de clausura. Tínhamos a liberdade, mas vivíamos longe uns dos outros. Não sei por que cargas d’água fomos desenvolvendo a ideia de que só era possível nos comunicarmos pelo WhatsApp.
Claro que não pretendo demonizar as mensagens de texto ou de voz, nem acho que elas sejam as responsáveis pelas nossas deturpações. Seria uma insanidade eu pensar isso, até por que eu acho que o WhatsApp é ferramenta genial, maravilhosa, realmente adianta muita coisa na nossa vida, conversar em grupo é de muita utilidade. Para recadinhos objetivos, não há melhor.
Mas, disparar mensagens não substitui um bom papo. Foi o que redescobri. E fiquei pensando que nós é que estamos fazendo daquela ferramenta a única forma possível de comunicação. Estamos vivendo numa sociedade movida a WhatsApp. E aí está um possível erro. Acho que foi por isso que ouvir a voz de minha amiga, através do telefonema, tenha sido tão significativo para mim.
Nós deturpamos tudo, sim. Da mesma forma que o smartphone tem nos proporcionado o privilégio do WhatsApp, usamos esse equipamento com a mesma lógica dos viciados nas maquininhas do videopôquer.
Tudo bem. Sei que é reflexão demais por causa de um simples telefonema. Mas, eu de fato fiquei me perguntando: quando o distanciamento social que vivemos por causa da pandemia acabar, e voltarmos a correr no dia a dia, iremos investir nos nossos afetos, nas nossas amizades? Ou cairemos na cilada da “irrealidade” virtual e, mais uma vez, deixaremos o contato com os amigos para depois, quando uma futura tragédia nos der a real da vida?
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Cícero Belmar é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Pernambucano, mora no Recife. Já ganhou duas vezes o Prêmio Literário Lucilo Varejão, da Fundação de Cultura da Prefeitura do Recife; e outras duas vezes o Prêmio de Ficção da Academia Pernambucana de Letras. É membro da Academia Pernambucana de Letras. Email: belmar2001@gmail.com; Instagram: @cicerobelmar. Na RUBEM, escreve quinzenalmente às segundas-feiras. 

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