04 maio 2020

Nuances da crise


Um casamento e vários funerais
Deco Costa*

A classe média brasileira, embalada pela influência hollywoodiana, adora um status. Cultua e cultiva as suas adorações como os egípcios tinham pelos seus deuses, faraós e as suas incríveis pirâmides. É muito comum também confundirem mérito com privilégios. Aliás, acidente hermenêutico característico em sociedades carentes de profundas transformações.

Recentemente um dos casamentos mais evidentes de fachada chegou ao fim: Bolsonaro e Moro. Era evidente, para não dizer óbvio que a união não era movida por um interesse uníssono pelo bem do país. Aliás, passa longe disso. O matrimônio político tinha cheiro e todas as evidências de um casamento arranjado, típico de uma sociedade trancafiada em sustentáculos da Casa Grande. Fingiam se aceitar e até ter prazer, um ao lado do outro, mas os dois sabiam que não existia clímax, nem tampouco um ponto G. O interesse era tão somente o poder.

O capitão, por mais que seja tosco, politicamente é sabido. Enxergava no ex-juiz Sérgio Moro, a sua Cleópatra. Sabe que classe média adora um símbolo e se for magistrado então, erguem até uma pirâmide para colocá-lo dentro. A admiração pela atividade se transforma em devoção e os tratam como verdadeiras santidades. O ex-ministro lavajatista sabia disso. Aliás, seu estilo é inconfundível.

Típico filho da classe média conservadora que no seu caso não é o bastante, ainda sendo reacionária, tem uma vaidade tão galopante que se percebe sem nenhum esforço o mau uso da antiga profissão em um sentimento menor de ego e status quo. Sua cultura geral assim como a sua atuação de magistrado se merecem, assim como fez por bem merecer uma vaga nesse deletério governo. O esforço em não ser magistrado, embora ainda utilizasse toga, valeu a pena: virou ministro da justiça.

Entretanto, esqueceu que nesse governo tudo está longe de ser pirâmide e muito próximo de ser castelo de areia. Seu fetiche por poder colidiu com o Messias às avessas. Enquanto lhe foi conveniente ser fiador de um governo miliciano, aparecia sorrindo ao lado do seu presidente em estádios. Eis que tinha uma pandemia no meio do caminho. As crises e trapalhadas do chefe máximo da nação poderia atingir o seu projeto pessoal político e não demorou ao até então ministro da Justiça cuspir no prato que comeu. E até pensão parece que tinha.

O fato é, alguém que não teve o mínimo de zelo pela sua função de judicante, não respeitando sequer a Constituição e toda uma série de normativos legais, importando um método de operação em que adequou ao estilo de suas predileções políticas, não teria outra atitude que não fosse pensar somente em si. Deixou o seu estimado presidente rezando sozinho com alguns pastores e um bom estoque de hidroxicloroquina no culto pesado da real política.

Ao ex-juiz, a esperança está na classe dominante brasileira parecer gostar não somente de Cleópatra, mas também de Macunaíma. Para quem ficou sem a pensão, pode ser a sua grande consolação. Ao inominável presidente, continuar errando talvez seja o seu principal acerto. Porque assim será fiel ao que sempre foi e não terá enganado ninguém, principalmente quem não votou nele. Aos que votaram esperando algo diferente, custo lamentar a veracidade do velho jargão que o “ódio cega”.

O casamento está desfeito. As provas das traições, como todo bom processo litigioso, já estão nos autos. Ocorre que esses autos é o destino da nação. Um país que já sofre as dores de sepultamentos diários por uma moléstia que não respeita quarentena e continua a avançar. Ao escutar os dois lados da história, não tem certo ou errado, ambos se mereciam. Quem não os mereciam éramos nós, o povo brasileiro.


*Deco Costa é professor e advogado, mestre e doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
[Ilustração: Pablo Picasso]

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