16 maio 2020

Obscurantismo

Regina, a má


Deco Costa*

“Na humanidade não para de morrer. Se você fala em vida, do outro lado morte”. Parece uma reflexão retirada de um livro filosófico, uma busca profunda sobre os valores e os mistérios que nos cercam, mas não. A reflexão é, na verdade, um insulto, um deboche, com direito a cantarolar o “Pra Frente Brasil” dos governos militares. E vem, incrivelmente, da atual secretária de Cultura, de uma atriz, da “namoradinha do Brasil”, de quem na maior parte da sua carreira foi associada aos papéis da “mocinha”. Entretanto, a vilã da vida real, deixou as suas muitas personagens apenas como um espelho do que poderia ser, sem ser.
Não conheço pessoalmente a secretária de Cultura, só pela televisão. A vi pela primeira vez como a “Rainha da Sucata”, no começo dos anos 90. Época da lambada. O país recém ingresso num período democrático, após duas décadas ditatoriais, elegia novamente um presidente civil de forma direta. A teledramaturgia era o que seria hoje os seriados da Netflix para os mais novos. Gostássemos ou não, era um conteúdo genuinamente nacional de forte ligação com a sociedade brasileira. E a atriz ou o ator que aparecia sempre sorrindo ganharia sempre a simpatia do público, como se aquele papel interpretado fosse a própria pessoa na vida real.
Se a então “namoradinha do Brasil” dissesse que não comentaria as mortes de Moraes Moreira, Rubem Fonseca, Aldir Blanc e Flavio Migliaccio, com receio de “não virar obituário”, certamente iriam achar que ela estaria fazendo um papel de vilã numa novela em que interpretava uma secretária da Cultura num governo tresloucado. Diriam até que ela não combinaria com o tal papel.
Mas, dessa vez, não existe papel ou interpretação. É ela. Sendo e dizendo não o que tem no script, mas o que de fato pensa. Dizer estar interpretando uma personagem de um governo irresponsável, não cola. A atuação, dessa vez, é própria vida real. As mortes que ela faz pouco caso são de verdades. Enquanto ela ri cantarolando hino ufanista de ditadura, pessoas são torturadas por um vírus e por um governo que faz dessa pandemia um folhetim só de capítulos ruins, sem previsão de quando a parte boa chegará.
Aliás, essa novela repleta de capítulos tristes desde 1º de janeiro de 2019, talvez não precisemos assistir até 31 de dezembro de 2022. Não somos só espectadores, somos também atrizes e atores que podemos atuar e transformar a realidade.
Se eu soubesse, aos meus sete anos de idade, que Maria do Carmo que sofreu tanto de amor por Edu, faria o papel da secretária de Cultura Regina Duarte e sofreria tanto de amor por Jair Bolsonaro, teria dançado menos lambada na abertura da “Rainha da Sucata” e teria lamentado mais o futuro por trás das cortinas. A “namoradinha do Brasil” resolveu casar com um país autoritário, fascista e desumano. Um país que ignora os seus artistas, despreza a sua população morrendo da “gripezinha” e debocha da quarentena com o presidente marcando churrasco e escondendo o resultado do seu exame.
Nas eleições de 2002, ela disse ter medo do país se tornar mais inclusivo e menos desigual, hoje o medo é nosso: de alguém que faz parte de um governo que se transforma diariamente num grande e triste obituário. O medo dessa pessoa fora do palco, mas no Planalto. Uma novela real em que a mocinha deu lugar a vilã, sem textos produzidos, com falas próprias e não do papel de que vai se interpretar. Regina Duarte é uma pessoa má.
*Professor e advogado, mestre e doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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