20 maio 2020

Palavra de poeta


Inanidade poética
Jacqueline Torres

Sob o pórtico
     estão espalhados os alos dos 
anjos
     e os anjos jazem sob as flores
     e as folhas da tarde verde jazem
Sob o véu
Vertem os olores, os olhos
a degenerescência da perversão
Sob a palavra
     o joio
     o pão dormido
     o mal-me-quer
     os deveres diários
os raios e os demônios
Sob as salvas de tiros
     os foguetes infinitos
     os dias decapitados no 
calendário
     a inocência tardia
Sob a noite
     durmo eu sonâmbula
     a alga marinha na palma da 
mão
     o Nordeste, os infiéis, o 
hipódromo
     sem cavalos
Sob a nulidade
     as respostas
     as cartas mal escritas
o cadáver do poema derradeiro
     escrito a canivete
Sob nada
Tudo caminha de rastro sob a luz 
enferma
Meu endereço deixei imerso no 
silêncio,
no gozo e no perdido.
Para não se encontrar destinatário
Renuncia-se ao verbo
     ao imensurável
     à tarde alaranjada
     à fronha de nuvem
ao disparo da bala.
Sob o absoluto
     o vazio,
     o inferno,
     a purgação
Três cartas da infância
     endereçadas ao infinito
E o esplendor do pó
     do sol posto
     dos melindres
     das madressilvas
     dos barbantes dos sapatos
Uma poesia tatuada de sarjeta
     de carvão
     de misérias remíveis por fim
Estúpida e alarmante
pendida do galho
     sobre o ventre aceso
     do divino.

Jacqueline Torres é educadora, militante comunista, ativista do movimento feminista, membro da Academia Pesqueirense de Letras e Artes - APLA; da Sociedade dos Poetas e Escritores de Pesqueira - Sopoespes; e do movimento de mulheres Sertão Poética

[Mark Rothko]

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