Teatro
Santa Isabel – monólogo
Ai de mim que sequer tenho
a sombra por companhia.
Meu coração é um engenho
remoendo nostalgia:
As imagens que eu retenho
de hoje são de outro dia.*1
a sombra por companhia.
Meu coração é um engenho
remoendo nostalgia:
As imagens que eu retenho
de hoje são de outro dia.*1
Monólogo
(O Teatro reflete sobre ele mesmo)
Cerrada a cortina e apagado o lustre da
plateia, os derradeiros espectadores transpõem minhas portas, que se fecham com
barulho. Agora já não há mais público, nem palmas ou gritos de bravo. Mas o
riso e o choro ainda ecoam por paredes, fosso e torre, lembrando a emoção que
as pessoas sentiram. O silêncio tardará a vir. Antes dele, escutarei
iluminadores, sonoplastas e técnicos, ocupados em desfazer cenários, baixar
refletores, transportar microfones e fios. Nos camarins, atores se desfazem dos
figurinos e da maquiagem, apressados em me deixar para trás. Esquecem que até
bem pouco “brincavam de ser outro perante um ajuntamento de pessoas que
brincavam de tomá-lo por aquele outro” *2.
O mais puro jogo. Meu palco retorna à inexpressiva mudez de urdimentos, varas,
pernas, coxias e rotunda. Mesmo sabendo que voltarei a ser uma caixa vazia,
alegra imaginar-me solitário.
Há quase dois séculos vivo alucinações
dirigidas. Nas manhãs frias e úmidas, percebo a irrealidade do mundo e me
surpreendo com o sentimento de horror ao que assisti: amantes infelizes
agonizando, reis mortos pela espada, filhos assassinando o pai. As encenações
também comovem, ensinam a compreender que não sou o que sou e que é necessário
estar aberto a todas as experiências, sem restrições, medo ou censura.
A música das orquestras, de quartetos de
cordas, piano ou oboé, a dança dos bailarinos e as vozes de cantores e cantoras
me deleitam. Acolho criaturas e criações de olhos vendados, deixo que
representem no meu palco a dor e o êxtase, o reles e o sublime, o sagrado e o
profano, confiando na transformação de sons, palavras e gestos na linguagem
mais cara ao humano: a arte.
Durante os anos de construção, e quando era
apenas um projeto, me chamavam pelo nome Teatro Provincial de Pernambuco.
Depois me batizaram Teatro de Santa Isabel ou, simplesmente, Santa Isabel, em
homenagem à princesa filha do imperador Pedro II. Um dia, esse senhor de barba
longa, amante da fotografia, ocupou o camarote de honra e admirou a beleza dos
meus traços. Faz muito tempo. Não fui apenas uma casa de espetáculos, praça de
divertimentos e convivência social, mas também um lugar para o exercício da
cidadania. Joaquim Nabuco afirmava que entre as minhas paredes se ganhou a
causa da abolição da escravatura no Brasil, referindo-se aos discursos e
eventos políticos aqui realizados.
Gostam que eu mencione a dança da bailarina
Anna Pavlova, no tabuado do palco. Outras dançarinas famosas também mostraram a
técnica nas pontas e no balé contemporâneo, mas a aura de glória cercava a
russa, tornando-se motivo de orgulho referir sua passagem pela cidade. Castro
Alves, o poeta romântico dos escravos, que viveu apenas 24 anos, conheceu a
atriz Eugênia Câmara, grande amor de sua vida, durante uma apresentação da peça
Dalila, de Octave Feuillet. Era comum neste espaço homens e mulheres se
apaixonarem e acertarem casamento, comerciantes fecharem negócios, políticos
comunicarem projetos.
Castro Alves, José Mariano, Joaquim Nabuco,
nunca esquecerei seus nomes.
Quebre-se o cetro do Papa,
Faça-se dele uma cruz!
A púrpura sirva ao povo
Para cobrir os ombros nus.
Faça-se dele uma cruz!
A púrpura sirva ao povo
Para cobrir os ombros nus.
Quanta atualidade na estrofe! O jovem Castro
Alves recitou-a aqui? Não, não nessa casa. A memória falha. Os versos são do
estudante de 18 anos, febril pela tuberculose, agitado com o ardor poético.
Foram declamados numa abertura solene das aulas na Faculdade de Direito do
Recife, para velhos professores estarrecidos e alunos delirantes. Tenho em
comum com a faculdade apenas os ferros de nossa construção, que resguardam de
incêndios. Tornei-me um espaço de convivência da cidade, o lugar mais frequentado
pela elite comercial e política. Assisti à Revolução Praieira, à campanha pelo
advento da República, ouvi os discursos de Martins Júnior e Silva Jardim.
Quanta coisa vi! Até fantasmas. Sim, eles me habitam, não há bons teatros sem
assombrações, de vivos ou mortos.
Há vários dias, uma atriz me examina e
investiga, caminha por corredores olhando detalhes. Pressinto que deseja falar
comigo. Evito conversas, mas hoje não conseguirei escapar à sua abordagem.
Observo-a de longe. É jovem e arrogante como todas as garotas de sua idade,
acredita ser possível transformar o mundo pela arte. Escondeu-se na torre e
espera que todos saiam. Confunde-se com o fantasma da bailarina, uma de minhas
assombrações. Sinto cansaço, preferia que me deixasse em paz.
Divago. A velhice traz lembranças. Passei por
reformas, desde o incêndio que me destruiu. Cada geração tenta manter-me de pé.
Vigiam para que os cupins não comam as madeiras, retocam os dourados e as
tintas, substituem carpetes e lâmpadas. Às vezes acho graça do passado, lembro
os precários lampiões de cena, a penumbra que favorecia encontros amorosos no
salão nobre. E a mesa de luz com tampo de mármore e alavancas de ferro? Parecia
a cabine de um trem.
Incomoda a fuligem preta e o barulho dos
carros, que aceleram e buzinam em torno de mim. Quando deu um concerto no meu
palco, o violonista espanhol Andrés Segovia mandou interromper o trânsito para
as pessoas escutarem melhor a sua música. Achei justo e aplaudi-o. Bravo!
Bravo! Os ruídos conspiravam contra o silêncio e a harmonia das cordas. Chovia
muito naquela noite memorável, acho que nunca mais choveu tanto no Recife.
Já não sopra a brisa que refrescava as paredes
e trazia as vozes dos heróis mortos nas revoluções. Se me esforço, ouço gritos
de escravos, lá de onde eram vendidos, na Rua do Bom Jesus. Como gostaria de
adormecer e acordar com os sinos das igrejas de Santo Antônio, Madre de Deus e
São Pedro dos Clérigos. São tristes e parecem chorar. Também alegram e trazem
esperança. Memorizei os versos de um poeta:
Há muito calaram sinos
pois não há quem os tanger.
Nem meninos nem meninas
tangem sinos no meu ser:
Calaram os sinos do mundo
e eu sinto a alma doer.*3
pois não há quem os tanger.
Nem meninos nem meninas
tangem sinos no meu ser:
Calaram os sinos do mundo
e eu sinto a alma doer.*3
*1 Ângelo
Monteiro
*2 Jorge Luiz Borges
*3 Ângelo Monteiro
*2 Jorge Luiz Borges
*3 Ângelo Monteiro
Ronaldo
Correia de Brito é escritor e médico. São de sua autoria O baile do
menino deus (teatro), Lua Cambará (disco), Faca (livro de contos), Galiléia
(Prêmio São Paulo de Literatura), Estive lá fora (romance) e O amor das sombras
(contos).
Fique
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