Mirtes
Renata seria só mais uma mulher preta, mãe solteira, se virando para sobreviver
no dia a dia bruto desse mundo desigual, se não fossem os tristes
acontecimentos daquela tarde.Em dia de protestos antirracistas, foi a
tragédia que tirou a invisibilidade de Mirtes e Miguel.
Ana
Cristina Santos*
Terça-feira, 2 de junho de 2020. O
Brasil virtual atinge pico de postagens contra o racismo. Mirtes saiu cedo para
pegar no batente. Ela é empregada doméstica, trabalha em um dos apartamentos do prédio
Píer Maurício de Nassau, no bairro de São José, região central do Recife. As
famosas “Torres Gêmeas”, ícone controverso do jeito de viver da elite
pernambucana. Pela mão leva o filho Miguel, de cinco anos, através dos muitos
quilômetros que separam a periferia do centro. Não há creche, estão fechadas
por conta da pandemia da Covid-19 que há mais de três meses atinge o país.
Mirtes Renata seria só mais uma mulher
preta, mãe solteira, se virando para sobreviver no dia a dia bruto desse mundo
desigual, se não fosse a tragédia que aconteceu naquela tarde. Ela saiu para
passear com os cachorros da sua patroa. Miguel ficou no apartamento, sob a
responsabilidade de Sarí, a patroa, que fazia as unhas com manicure atendendo
em domicílio. O menino chora para ir encontrar com a mãe, faz birra (um
clássico da fase dos cinco anos. Quem tem filho sabe). Corre para o elevador.
Sarí desiste de evitar. Aperta algum botão do elevador e deixa que o menino se
vá. Ele sobe até o sétimo andar, depois até o nono e desembarca. No gradil do
hall de máquinas se debruça, possivelmente procurando ver a mãe, e cai. Miguel
foi socorrido, mas não chegou com vida ao hospital.
Sarí Gaspar Corte Real foi autuada em
flagrante, por negligência, e saiu após pagar fiança de 20 mil reais. A partir
desse momento, para a imprensa pernambucana ela seria apenas a patroa, a
empregadora, a mulher que não teve sua identidade revelada. O vídeo com as
evidências em um primeiro momento não foi divulgado, apesar de ser citado em
detalhes, acompanhado de um elogio ao trabalho da perícia que refez o passo a
passo do que aconteceu na hora que o elevador parte do quinto andar, com
Miguel, sozinho ali dentro. Mas ele continua passando na minha cabeça desde que
soube desse fato, se repetindo, e o rosto de Miguel é o rosto do meu menino
preto, aos cinco anos de idade. É o sorriso do meu menino que vejo se esvaindo,
por 35 metros, até o fatídico encontro com o chão.
Mirtes Renata Santana da Silva, a empregada,
a mãe do menino que caiu. É fácil encontrar seu nome e perfil nas redes
sociais. Não há um adjetivo para descrever a mãe que perde um filho, penso
nisso enquanto escrevo este artigo. Talvez porque não haja como descrever o
tipo de dor, mesmo que as mães da periferia a conheçam tão bem. Nas fotos ela,
tão jovem, sempre sorri. E corre. E brinca carnaval. E agradece a Deus e às
outras mulheres de sua vida a oportunidade de celebrar com festa os cinco anos
do seu filhinho. E eu leio ali sororidade, resiliência, e a solidão que embala
a vida das mulheres negras. E isso também me dói.Mirtes é a mulher jovem que
emoldura sua foto do Facebook com um bem-humorado apelo para que as pessoas
fiquem em casa. Ela não pode ficar porque para muitos, no nosso país de herança
escravocrata, serviço doméstico é essencial e ela tem que escolher a melhor
estratégia para sobreviver.
No Brasil 6,356 milhões de pessoas
sobrevivem trabalhando nos serviços domésticos. 97% delas são mulheres, em sua
maioria negras e com baixa escolaridade. Dessas, apenas 1,757 milhão atuavam
com carteira assinada. Os dados são da
última divulgação da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad
Contínua). A informalidade continua sendo traço principal no serviço doméstico,
embora desde abril de 2013, esse trabalho seja regulamentado por lei. Um
conjunto de normas para a profissão, incluindo obrigações de empregadores, foi
sancionada em 2 de junho de 2015. O pior dia da vida de Mirtes aconteceu
exatamente cinco anos depois da sanção da Lei que deveria garantir dignidade e
segurança ao seu labor.
A resistência à regulamentação do
serviço doméstico no Brasil vai além de questões econômicas, é um dos piores
traços do racismo estrutural que nos adoece cotidianamente. É cunhada sob a mesma
lente maldita que embrutece o olhar sobre corpos negros. Que naturaliza as
balas perdidas dentro da van, dentro de casa, na camisa do uniforme da escola.
Que relativiza os segundos que uma pessoa pode aguentar sem respirar. Que
transforma pinho sol em arma química. Que faz algumas vidas importarem menos
que outras. A mesma lente que embota os olhos de quem vê uma criancinha de
cinco anos e por conta da cor da sua pele não pensa que como qualquer outra,
ela só precisa de um colo, de uma distração ou de alguns minutos de atenção e cuidado.
Miguel Otávio Santana da Silva será
mais um nome na nossa revolta, no nosso inconformismo e será só isso se não
formos capazes de trazer ao mundo real desdobramento para as hashtags. Se não
refletirmos sobre o racismo que está no nosso DNA como nação, como sociedade,
mas também nos pequenos gestos do nosso cotidiano. Superar o racismo só será possível se
tivermos condições de reconhecer privilégios, de rever atitudes costumazes, mas
principalmente, depende da nossa capacidade de pensar conjuntamente questões
como economia e raça, entendendo que classe tem cor e que essa é uma relação
estrutural impossível de ser analisada a partir da fragmentação.
A história de Mirtes, para além da
tragédia e do horror que pontuou sua Blackout Tuesday, continuará
naturalizada e anônima enquanto insistirmos em olhar esse fato como a história
de uma mulher e não de milhares de mulheres, como uma notícia extraordinária de
jornal, enquanto pensarmos que punir uma pessoa, atendendo nosso justo e
sazional desejode justiça, resolverá essa dor lancinante que cala no peito do
povo negro dia após dia, através dos séculos.
*Ana Cristina Santos é
jornalista, pesquisadora sobre comunicação alternativa e popular e doutoranda
em Comunicação na Universidade de Brasília
Participe https://bit.ly/3c6HtLo
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