13 junho 2020

Uma crônica de Cícero Belmar


Caderninho de frases
Cícero Belmar

Não digo que passou rapidamente, mas me surpreende constatar que hoje é o primeiro dia do resto de 2020. Chegamos até aqui, um de junho, como se tivéssemos atravessado um braseiro. Foi, e ainda está sendo, um primeiro semestre bem difícil, em que o medo somado às limitações pautaram nossas atitudes.
Ainda é cedo para dizer que renascemos, por enquanto transportamos uma carga pesada. Até o começo do ano, vivíamos achando que todos os caminhos nos levariam à praça pública e ao parque. Com os olhos presos no cotidiano e os desejos observando somente as delícias do mundo, caímos num poço fundo. Não estávamos preparados para essa vida de recolhimento.
Passamos a nos sentir excêntricos, não poder sair de casa é um modelo de vida estranho. Nosso pensamento continuou na rua, mas o nosso corpo ficou entre as quatro paredes. O isolamento contra o vírus é amargo, mas a única vacina ao nosso alcance. Sabedor das nossas reclamações, o Deus Mercado passou a nos bombardear com ideias contrárias ao recolhimento, como se esse modo temporário de vida significasse ameaça ao capitalismo. Os arautos do sistema passaram a nos instigar com o “exercício da liberdade”.
Tateando no escuro, chegamos aos aqui e agora. O começo da quarentena (estou entrando para o terceiro mês consecutivo) foi de muitas perguntas. Questões abrangentes sobre o passado, o presente, o futuro, o significado do que vivemos, nossas limitações humanas. No meu caso, fui logo descobrindo que as respostas não tinham urgência. As que me chegavam, eram todas irônicas.
Descobri que não tenho nenhum talento para ser filósofo na minha vida particular. Enquanto eu me tornava um indagador inveterado e Platão não estava ao lado para me responder aos questionamentos, terminei fazendo uns passeios dentro de mim.
Veio-me à lembrança algo bastante prosaico, enquanto eu lia, no computador, uns provérbios populares que os achei curiosos. Pessoas densas podem até torcer o nariz para esses ditos populares, por os acharem fúteis. Mas, os achei ótimos.
Nessa leitura ao computador, lembrei-me de um caderninho de capa coberta artesanalmente, que minha irmã Socorro conservava, com muito cuidado, na adolescência. Era cheio de colagens criativas, frases escritas com letras caprichadíssimas, assuntos separados por temas. O caderninho era passado de mão em mão entre as amigas dela. Tipo clube da Lulu. Continha reflexões, pensamentos e frases feitas de minha irmã e das amigas dela. Eu ficava de olho e pegava aquele tesouro às escondidas. Socorro jamais imaginou que eu era leitor assíduo do Caderno de Pensamentos. Confesso que li.
Ler frases prontas, portanto, não é um sintoma da pandemia. No computador, encontro umas que falam sobre o tempo. Copiei algumas: “O tempo é a única esperança de quem já perdeu os sonhos”. Tem mais: “Os dias talvez sejam iguais para um relógio, mas não para um homem” (Essa, inclusive, deve ser de algum famoso). Nessa mesma linha: “O tempo não apaga o que o coração já gravou”. (Está provado que só é possível filosofar em alemão?).
Estou convencido de que ver beleza nas frases populares também pode ser uma ferramenta importante para o enfrentamento desse dia a dia com mais leveza.
*Cícero Belmar  é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras. 
Essas dicas de leitura continuam válidas https://bit.ly/3dVOJM7

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