De
civilização e de trogloditas
Rogério
Cezar de Cerqueira Leite, na Folha de S. Paulo
O atual governo do estado de São Paulo, em consonância com a administração federal de Jair Bolsonaro, propõe em regime de urgência uma legislação que lesa profundamente as universidades paulistas e a Fundação de Amparo para a Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Essas instituições economizaram e
constituíram paulatinamente uma reserva financeira para contingências, como
qualquer empresário consciente ou dona de casa. Com as usuais flutuações de
rendimentos e eventuais imprevistos, como a atual tragédia da pandemia de
Covid-19, seria uma irresponsabilidade não terem essas reservas. Se elas não
existissem hoje, com a atual crise sanitária, tais instituições estariam,
provavelmente, falidas.
Ninguém pode questionar a intenção do
governo paulista de procurar equilibrar o Orçamento. E é elogiável que o faça o
mais cedo possível. E é de ser elogiada a iniciativa do governo de oferecer uma
explicação à população do estado.
Todavia, o porta-voz do governo,
deputado estadual Carlos Pignatari (PSDB-SP), não foi muito justo em sua
argumentação em artigo publicado nesta Folha no dia 19 de agosto ("A
necessária modernização paulista"). Esqueceu de dizer, por exemplo, que as
reservas para contingências das universidades paulistas ficam em torno de 10%
de seus orçamentos, e que esses orçamentos, ao contrário do que acontece com
órgãos da administração direta, incluem os salários de seus funcionários. Quanto
ao fato de a Fapesp ter usado apenas cerca de 40% de seu orçamento até julho,
esquece o porta-voz que houve em abril uma mudança de direção da instituição e
que, elegantemente, o dirigente anterior se absteve de novos gastos —e que o
novo dirigente talvez esteja, por cautela natural, não se precipitando.
Além do mais, o porta-voz parece não
conhecer aritmética. Diz que a Fapesp recebeu em 2019 R$ 1,4 bilhão e só gastou
R$ 400 milhões. Ué, como é possível que a Fapesp só tenha como reserva R$ 500
milhões?
O porta-voz também não parece ser um
erudito. Confundir geologia com botânica mostra porque não gosta das
universidades —ou, talvez, tenha ouvido falar em floresta petrificada?
Note-se também que uma vez
estabelecidas essas reservas, não há ônus adicional para o estado; e que, uma
vez subtraída a reserva atual, não haverá no futuro ganho financeiro nenhum
para São Paulo.
Ora, se não há ganho para o governo
paulista, senão neste momento inicial, então por que instituir um prejuízo
permanente às universidades e à Fapesp? Isso nos permite concluir que a
motivação fundamental para a proposta não é meramente econômica. É um traço
deplorável da sociedade dos homens a reação contra todo processo civilizador.
Parece que inteligência e conhecimento ofendem os medíocres. A atual onda
mundial obscurantista, que defende o criacionismo, o terraplanismo e outros, é
muito provavelmente apenas a reação ao imenso sucesso que têm tido as ciências
naturais e humanas nestes últimos tempos.
Conhecimento é poder, e aqueles
apoucados intelectualmente investem contra as instituições que produzem
conhecimento - talvez apenas por medo do desconhecido.
O governador João Doria (PSDB), que
para se diferenciar do governo federal defendia todos os dias, exacerbadamente,
a ciência, está hoje ameaçando-a de obliteração. Será que foi sincero em seus
discursos cotidianos? Ou o seria em suas atuações atuais?
*Rogério Cezar de Cerqueira Leite - Físico, professor emérito da Unicamp, membro do Conselho Editorial da Folha e presidente de honra do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM)
*Rogério Cezar de Cerqueira Leite - Físico, professor emérito da Unicamp, membro do Conselho Editorial da Folha e presidente de honra do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM)
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