Há a expectativa de vacinar 20% da população até o fim de 2021
. Em mais de 30 anos de carreira, a médica curitibana
Mariângela Simão acompanhou de perto o combate às moléstias contemporâneas:
Aids, ebola, hepatite viral. Agora, como diretora de Acesso a Medicamentos,
Vacinas e Produtos Farmacêuticos da Organização Mundial da Saúde, lidera um desafio
ainda maior: conter a doença respiratória
mais letal dos últimos cem anos, que infectou mais de 22 milhões de seres
humanos e matou cerca de 800 mil até o momento.
. O sucesso
no combate à doença, avalia, depende de três condições. Além de encontrar uma
vacina segura, eficaz e distribuí-la em escala, é preciso descobrir um
medicamento que evite mortes pela doença. Falta ainda garantir a massificação
de testes seguros. Diante desses desafios, a médica não fala em vencer, mas
controlar a pandemia. “Precisamos de soluções globais.”
. A corrida pela vacina, aliás,
ganhou tons de Guerra Fria, desde que a Rússia pleiteou a pole position com um
imunizante testado em apenas algumas dezenas de cidadãos. Governos de todo o
mundo têm prometido oferecer as primeiras doses de uma vacina segura e eficaz
antes do fim do ano. As expectativas da OMS, contudo, são bem menos
apoteóticas. “Esperamos vacinar até 20% da população até o fim do ano que vem.”
CartaCapital
CartaCapital: Há várias vacinas em fase
avançada. A Rússia também anunciou um imunizante. Dá para comemorar?
Mariângela Simão: Espera-se que
haja mais de uma vacina, e que essas vacinas protejam diferentes grupos da
população. Com tantos candidatos, é provável que tenhamos mais de uma. Sobre a
vacina russa, só o que sabemos até agora é o número de pacientes, 76, das fases
I e II. E que iriam começar uma fase de avaliação pós-entrada no mercado, com 2
mil pacientes.
CC: É pouca gente, não?
MS: De maneira geral,
os estudos nas fases I e II são pequenos. Com dezenas, centenas de indivíduos.
Esses números não dão condições de avaliar se uma vacina é segura ou não. A
fase III, para confirmar a eficácia e a segurança, envolve milhares de pacientes.
Alguns efeitos colaterais, os mais raros, só aparecem quando se tem um maior
número de testes. É muito importante passar pela fase III. É importante seguir
todas as fases preconizadas internacionalmente. Agora, mesmo que passe pela
fase III, essa vacina precisa ser licenciada. Por mais rápido que se anuncie um
medicamente, há uma série de trâmites necessários para que ele possa entrar no
mercado internacional.
CC: Para quando podemos esperar
a imunização em massa da população?
MS: A OMS e os
parceiros internacionais esperam que haja vacinas em meados de 2021. Até o fim
do ano que vem esperamos vacinar até 20% da população, mas essa é uma
expectativa otimista. Vai depender da vacina, da quantidade suficiente. Há um
esforço muito grande em cumprir essa meta. Mas até haver quantidade suficiente
para vacinar uma parcela significativa da população, vai demorar mais, com
certeza.
CC: O que falta descobrir sobre
o coronavírus?
MS: Muita coisa. A
questão da imunidade não está bem esclarecida. Não sabemos ainda se é permanente
ou transitória. E isso vai afetar a vacina. Há várias questões ainda não
respondidas. Aprendemos cada vez mais, mas ainda não é o suficiente. Mas
sabemos de uma coisa: este é um vírus danado de resiliente. Sobrevive em
diferentes temperaturas, diferentes superfícies, tem alta transmissibilidade…
CC: Não é pessimismo então
admitir que vamos conviver com este vírus por um bom tempo?
MS: Com certeza,
não. A humanidade vai conviver com este vírus por mais algum tempo. Ao menos
até que tenhamos três coisas. A primeira, testes rápidos, baratos e que
funcionem. A segunda, um medicamento. Até agora, só há um que diminui a
mortalidade, a dexametasona. É ótimo que ela funcione, mas só serve aos
pacientes graves no ventilador. Sobre o outro remédio, o remdesivir, ele apenas
reduz os dias de internação. Precisamos de uma droga para impedir que se morra
pelo coronavírus. Terceiro, uma vacina eficaz e
disponível em quantidades suficientes. Essas coisas precisam caminhar juntas.
Por isso as medidas de distanciamento social, uso de máscaras e cautela no
relaxamento das restrições são tão importantes. O vírus continua a circular e
não tem dado sinais de recrudescimento. Mas é preciso confiar nos esforços
enormes para descobertas que vão ajudar a controlar esta pandemia.
CC: Só nos últimos 20 anos
tivemos H1N1, Sars, gripe aviária. Podemos contar com outras epidemias?
MS: É provável que
haja outras pandemias, com certeza. Imediatamente após uma crise, há um enorme
interesse dos países em investir na preparação. Mas nunca se está preparado o
suficiente. Uma epidemia dessa proporção, com um vírus de fácil transmissão
respiratória, o mundo não vivia há mais de cem anos.
CC: Na última vez que
conversamos, ainda no início da crise no Brasil, a senhora disse que a saída
dependeria da resposta de cada país. Qual o saldo dessa reação?
MS: Não se esperava
um impacto socioeconômico tão grande. Tem muitas coisas mais coordenadas.
Aprendeu-se muito no sentido de o que funciona em termos de saúde pública. É
importante haver confiança nas instituições, que fazem as regras de como a
população deve se comportar, especialmente nos espaços públicos. Mas até em
países onde houve controle a reabertura provoca reaparecimento de casos. Aqui
onde eu vivo o governo voltou a fechar casas noturnas e endureceu as restrições
em restaurantes. Garçons terão de anotar o nome e endereço de todo mundo.
CC: Há lições ainda não
assimiladas?
MS: Muitos países ainda
não se deram conta de que soluções nacionalistas não vão resolver esta crise. O
mundo precisa de gente e bens em circulação. A cadeia de produção é
globalizada. A vacina desenvolvida em um lugar, envasada em outro, produzida em
outro. Esta é a realidade da economia. Soluções de país para país não vão
perdurar. Precisamos de parcerias globais. Quando houver tratamento e vacina
eficazes, ela precisa estar disponível em todos os países. Não apenas nos mais
ricos. E também não só nos pobres. Nesta situação, mesmo os países ditos
líderes não são líderes. É evidente a necessidade de cooperação internacional.
Não dá para ser de outro jeito.
Viver em quarentena é um desafio https://bit.ly/2Xm2lK5
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