Nós, os restantes
Cícero Belmar*
Estou
deixando para trás uma semana em que perdi um amigo para a covid-19. Nós, os
consternados, a quem cabe relatar esta rotina cinzenta, vivemos a tragédia de
sermos humanos.
Esta pandemia nos ensina a conviver com as
perdas. Com as nossas vulnerabilidades. Com nossas limitações e fraquezas. A
única forma de continuarmos com um mínimo de paz é nos adaptarmos a esta
realidade maluca.
Não vou me ludibriar. Não vou fingir que não
estou magoado com a perda do meu amigo. Nem que estou com medo do vírus. Esta pessoa
desamparada sou eu. Esta dor sou eu. Profundamente eu.
O meu amigo se chamava Beto Rezende. Não
resistiu às sucessivas paradas cardíacas, complicações enquanto estava
intubado, lutando para sobreviver ao novo coronavírus.
Beto era da luta. Um enorme senso de justiça
social, defensor das liberdades individuais, bem informado, humilde e leve,
crítico ferrenho dos fascistas, dos fundamentalistas, dos caretas e bossais. O
ateu mais misericordioso e fraterno que Deus colocou na face da Terra.
Foi jornalista. Dividi com ele o idealismo
das redações de jornal, achando que nossas canetas e bloquinhos de repórteres
poderiam contribuir para um mundo mais igualitário. Protagonizamos gargalhadas
e lágrimas típicas da boemia nas mesas de bar. Vivemos aquela coisa toda da
geração coca-cola nos anos 1990, quando fomos jovens. Pintamos a cara para
pedir impeachment de um presidente que não gostava de gente.
Recentemente, víamo-nos pouco, pelas
contingências. Mas, a amizade (esse misto de afeto e afinidade) estava ali, “em
ferro e flor”. As alegrias de uma amizade, quando um amigo morre, ficam.
(Mesmo correndo o risco de parecer tolo,
recomendo que se você tiver palavras de afeto, de alegria, de conciliação, de
reflexão, de incentivo, para dizer a um amigo (a um parente, a um conhecido),
diga-as agora. Não deixe as palavras para um dia quando elas jamais poderão ser
ditas).
Esta pandemia desfigura a vida e parece
interminável. A doença se espalha e se prolonga enquanto tememos por nós mesmos
e pelas pessoas com as quais nos preocupamos. (Meu Deus, como será o nosso
momento seguinte?).
A proximidade com a morte nos faz enxergar os
débitos: nós nos banalizamos na trivialidade do dia a dia, nos fatos
corriqueiros e cotidianos. Nessa corrida superficial, terminamos construindo
muralhas com os sentimentos.
A perda de um amigo querido desperta em nós
uma fatalidade. Tomamos consciência de que a vida é passageira demais, o que é
hoje pode não ser amanhã, e uma certa urgência de viver termina nos obrigando a
perder o medo de sentir os nossos sentimentos. Afinal são eles, os sentimentos,
que dizem muito sobre nós mesmos. E sobre o mundo.
*Cícero Belmar é
escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças
de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana
de Letras.
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