A 'ESTESIA' DE CIDA Pedrosa
VICTOR AUGUSTO TENÓRIO, Revista
Continente
A contemplação ocupa um espaço diferente na vida de Cida Pedrosa. Natural
de Bodocó, deixou o interior Pernambucano no final da década de 1970, aos 14
anos, e partiu rumo ao Recife para estudar. Ao chegar na capital pernambucana,
trouxe consigo o hábito de contemplar, de forma que locais como as pontes que
cruzam o Rio Capibaribe se tornaram lugares de observação. Das paisagens da
cidade colheu seus primeiros poemas até se reconhecer como poeta. Décadas
depois, durante a pandemia do novo coronavírus, ela fez dos seus passeios
diários com o cachorro Bob Marley um momento de observação da metrópole que
dormia. Agora, seus escritos e fotografias que registram este momento singular
dão forma à Estesia, seu décimo livro. O lançamento, porém, foi
alvo de ataques tipo zoombombing (invasão de eventos
virtuais), organizados pela extrema direita.
A obra, até o momento disponível somente em versão digital (e-book),
reúne 40 haikais, que são acompanhados, cada um, por uma fotografia.
Inicialmente, o projeto tomou forma no Facebook de Cida. Ao acompanhar o
engajamento das publicações, percebeu que os poemas curtos e suas fotografias
poderiam dar vida a um novo título. Das 40 imagens, nove foram tiradas em seu
apartamento. O restante mostra o abandono, o vazio e a vida que se transforma
no microcosmo urbano existente no raio de 2km e meio da residência da poeta,
que fica no bairro das Graças, Zona Norte do Recife.
“Eu tinha me afastado do meu emprego na Secretaria da Mulher e me
encontrei meio estabanada. Acho que é normal após sair de um trabalho para o
qual dedicava cerca de 15 horas diárias e, do nada, ficar parada em casa, vendo
notícias de morte. Em paralelo, estava lendo um livro de haikai, que eu eu amo,
pois sou apaixonada por poema metrificado. Mesmo assim, tive que sair para
passear com meu cachorro, Bob Marley, que não consegue fazer suas necessidades
em casa. Quando saí, encontrei uma cidade parada. Então o livro é o meu olhar
sobre a cidade e suas felicidades e tristezas”, comenta Cida Pedrosa.
Bicicletas voam
Na cidade que não vê.
Dor no app.
O verso acima é acompanhado por uma fotografia despretensiosa — como
todas do livro — que mostra dois entregadores de aplicativo descansando em uma
calçada. Antes, também causa espanto a fotografia de um casal dormindo na
rua. “Quando saí, foi isso o que encontrei na rua. Muita gente com fome,
muitos entregadores fazendo corridas para os apps e uma cidade paralisada. Na
Rosa e Silva, tinha uma igreja vazia e sinal de trânsito que, quando esverdeia
para o pedestre, ninguém atravessava. Ao mesmo tempo, comecei a ver pássaros,
lagartixas e flores. É uma cidade que começou a renascer com o afastamento dos
homens. Na calçada da Rua Amélia, encontrei um formigueiro, o que era
impossível em outros tempos. Isso foi me espantando. Comecei olhando pro chão,
depois para minha altura e, por último, para o que estava acima de mim”.
Questionada sobre a origem do seu hábito de contemplar os detalhes da
cidade, Cida Pedrosa recorda de quando chegou ao Recife e ficava nas pontes,
“abestalhada”, como ela se descreve, observando o Rio Capibaribe passar. Ela
conta que o hábito foi trazido consigo do interior, onde as pessoas costumam
dedicar-se mais à contemplação dos seus arredores. “Mas teve um momento, por
volta dos meus 30 anos, que a cidade me engoliu. Eu não continuava contemplando
no meu dia a dia. Nesse momento de pandemia, eu vi que precisava voltar a
contemplar a cidade, pois eu passei a funcionar no automático, como muitos.
Minha literatura rompe com esse estado automático e tem muito a ver com o
Recife, uma cidade que está impregnada na minha alma. Por isso eu não quero
somente contemplar a dor, quero contemplar o belo também. As geografias estão
fortes na minha poesia, pois eu sou de territorializar muito. Tem poeta que
viaja pra dentro, eu viajo para fora”.
O lançamento do livro foi realizado, assim como tantos outros eventos
neste ano, através de um encontro virtual. Cida não imaginava, porém, que seria
alvo de invasores virtuais de extrema direita. É que, além de poeta, cida é
feminista e pré-candidata à vereadora do Recife pelo PCdoB, o que a coloca com
o perfil dos alvos favoritos dos ataques tipo zoombombing, que têm
“sequestrado” lives de mulheres de esquerda que concorrem a cargos públicos.
Invasões semelhantes ocorreram, por exemplo, no fórum La Política es Cosa de
Mujeres e com Giovana Mondardo, pré-candidata a vereadora na cidade de Criciúma
(SC) pelo PCdoB.
“A reunião começou e eles já estavam dentro da sala. É que eu divulguei o
link, pois acredito que os lançamentos de livros devam ser públicos. Depois
eles conseguiram desligar meu microfone e o dos coordenadores. Começaram a
gritar palavras de ordem, colocar sons de metralha, conseguiram remover o vídeo
da campanha, gritavam pelo presidente Bolsonaro e ainda tocaram músicas do
Exército. Tinha uma mulher com eles e eu consegui falar pra ela: ‘teu lugar não
é ai, é aqui, do lado de cá. Depois disso ela parou… Fiquei feliz com esse
momento de esperança numa situação adversa. A gente criou uma alternativa em um
outro link para os palestrantes, de forma a exibir o debate pelo YouTube”,
conta a poeta.
Em tempo, a renda obtida com com a venda do e-book, que é feita
exclusivamente através da Amazon, será destinada para a União Brasileira de
Mulheres, entidade feminista do movimento social brasileiro que atua na promoção
e defesa dos direitos das mulheres, para fomentar a campanha “distribua amor,
doe alimentos”.
*AUGUSTO TENÓRIO, jornalista.
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