23 setembro 2020

Saúde das plantas


Depende de nós
A Organização das Nações Unidas (ONU) declarou 2020 como o Ano Internacional da Saúde das Plantas, reconhecendo assim a importância desses seres vivos na preservação do planeta. Entretanto, a comunidade científica parece dividida quando se trata de usar defensivos agrícolas e organismos geneticamente modificados para proteger as plantas de pragas e doenças. Para que as estratégias adotadas sejam efetivas, devolvendo o equilíbrio à biosfera, a humanidade deve mudar seu comportamento destrutivo e nada sustentável.
Ciência Hoje
A vida no nosso planeta vem da luz solar captada pela fotossíntese que ocorre nas cianobactérias, algas e plantas. A energia resultante desse processo permite que todos os seres vivos se construam, reconstruam e reproduzam, desde que estejam num ambiente favorável, que lhes garanta espaço, acesso a oxigênio, carbono, água e uma série de outros componentes orgânicos e inorgânicos em condições climáticas vantajosas. Na pirâmide alimentar do ciclo da vida, as plantas têm o papel de produtores primários. Sem elas, a vida animal, inclusive a nossa, seria impraticável.
A humanidade se preocupa com a saúde das plantas apenas quando sofre ameaças que afetam a economia e a saúde pública. Já no século 19, o biólogo francês Louis Pasteur (1822-1895) pesquisava os micróbios que causavam doenças nas videiras, com consequentes prejuízos na produção de vinho.
Nessa mesma época, o vírus do mosaico do tabaco (TMV) foi estudado em detalhe pelos danos que causava às plantações, muito antes de se avaliarem os prejuízos provocados pelo uso da planta à saúde humana. A Tradescantia pallida (conhecida como trapoeraba-roxa ou coração-roxo) muda a coloração dos tricomas (órgãos da flor que produzem o pólen) quando exposta à radiação ionizante (aquela capaz de modificar o DNA das células). Por isso, a espécie é usada como indicador de níveis tóxicos de radiação.

Balanço de gases na atmosfera

Os seres que fazem fotossíntese, absorvendo gás carbônico (CO2) e liberando o oxigênio (O2) que respiramos, somam aproximadamente 374 mil espécies de plantas, sendo 308 mil vasculares (que têm vasos condutores de seiva) – das quais 295 mil são angiospermas (com frutos) –, 44 mil espécies de algas e cerca de 6.300 espécies de cianobactérias. Estas últimas representam 0,0005% da biomassa de carbono global.
Ao conquistarem o ambiente terrestre há 470 milhões de anos, as plantas se depararam com uma atmosfera muito mais quente do que a atual, com uma concentração de CObem maior que a de hoje. Ao longo do tempo, a expansão da vegetação consumiu parte do CO2, aumentando a concentração de oxigênio e resfriando a atmosfera.
Coincidência ou não, as concentrações de CO2 na atmosfera vêm aumentando, sobretudo a partir da Revolução Industrial. O nível de CO2 era de 296 ppm (partes por milhão) em 1900. Já, em 2020, o índice medido pelo observatório da NOAA (sigla em inglês para Administração Norte-americana Oceânica e Atmosférica) em Mauna Loa, Havaí, era de 413 ppm – 40% a mais.
A respiração de um ser humano adulto consome, em média, 427 kg de oxigênio por ano – os atuais 8 bilhões de pessoas consomem, anualmente, 3,42 gigatoneladas (Gt) de O2 por ano. O consumo dos animais domesticados, como bois, cabras, ovelhas, porcos e aves, tira da atmosfera mais 2,53 Gt de oxigênio a cada ano.

ONU em prol das plantas

A Organização das Nações Unidas (ONU) declarou 2020 como o Ano Internacional da Saúde das Plantas (IYPH), um ato pioneiro – porém atrasado –, de nobres intenções, que a humanidade poderia abraçar. Finalmente, a ONU reconheceu que a saúde de qualquer grupo natural de seres vivos, inclusive humanos, só é possível quando há algum grau de equilíbrio na biosfera terrestre. Esse equilíbrio só existe mantendo proporções sustentáveis de populações de todos os agentes da pirâmide ecológica: produtores, consumidores primários a quaternários e decompositores.

A maioria das espécies vivas se enquadra apenas em uma dessas categorias, mas os seres humanos atuam em praticamente todas, exceto na de produtores. Atualmente, a maior biomassa (matéria orgânica usada na produção de energia) viva na Terra é a das plantas, em sua maioria produtores primários, com 450 GtC (gigatoneladas de carbono); a dos consumidores de todos os níveis alcança apenas 95,2 GtC. A biomassa de todos os animais, com 2 GtC, representa apenas 0,37% do total e depende inteiramente da saúde das plantas.
Os seres humanos representam apenas 0,01% da biomassa da Terra, mas, a partir da Revolução Industrial, de meados do século 19 até o presente, já converteram 8% da vegetação nativa dos continentes em plantações, pastagens e cidades. A ONU chegou a essa conclusão com atraso, pois sua estrutura de governança é antiquada e pautada num modelo ultrapassado de diplomacia: fazem-se longas conferências, que geram extensos documentos, que não são adotados e sancionados pelas potências mundiais. Manda, portanto, o poder econômico e não a ciência.
Se os consumidores de qualquer nível se reproduzirem mais do que o normal, a pirâmide ecológica entra em desequilíbrio, o que é agravado por mudanças climáticas, poluição por pesticidas e plásticos e pela  perda progressiva de vegetação natural. A humanidade levou 200 mil anos para alcançar 1 bilhão de indivíduos, mas apenas dois séculos para chegar aos atuais 8 bilhões.
Já no século 18, o economista britânico Thomas Malthus (1766-1834) previa que a população humana cresceria mais rapidamente do que a sua capacidade de produzir alimentos. Ele foi tachado de alarmista e ridicularizado, pois, por um breve momento da história, a produção de alimentos conseguiu acompanhar a taxa de reprodução de humanos graças à expansão, sem precedentes, de áreas agropastoris e ao desenvolvimento da agricultura mecanizada.
Entretanto, a aceleração hoje verificada do crescimento da população humana tenderá a aumentar por algum tempo, enquanto conseguirmos respirar o ar e beber a água do planeta – ambos já com qualidade comprometida por poluição antrópica – e enquanto alguns serviços ambientais básicos, como a polinização, forem minimamente mantidos.

Se insistirmos por muito mais tempo no atual sistema socioeconômico e geopolítico global, a extinção gradual das espécies, inclusive a nossa, será inevitável. Não faltam números comprobatórios revelados em diversos artigos escritos pelos mais variados cientistas, alertando a humanidade para os riscos de nossa extinção, aliada à da maioria dos outros seres vivos. Quem os lê? Quem os ouve? Manter o modelo de produção vigente parece mais cômodo.
Polinizadores versus poluição

A reprodução da maioria das plantas com flores depende de agentes polinizadores, como abelhas e vespas, borboletas e mariposas, aves e morcegos. Esses seres eram extremamente abundantes até poucos anos atrás, mas, segundo pesquisas recentes (veja Leia +), suas populações estão em declínio catastrófico.
Um exemplo grave é a poluição causada por agrotóxicos; em especial, os neonicotinoides. Ainda que em concentrações ínfimas, eles provocam doenças nas abelhas que ficam desorientadas e menos imunes aos ácaros e parasitas. Esses problemas chegaram a tal ponto que plantadores comerciais de árvores frutíferas têm que alugar colmeias móveis de abelhas durante as florações, porque as abelhas nativas já desapareceram.
Cenário diplomático mundial

Segundo fontes da FAO, em torno de 40% de toda a produção agrícola do mundo se perde anualmente pelo impacto de pragas e doenças, agravando a fome e pobreza de comunidades rurais. Está ficando cada vez mais claro que as medidas tomadas por humanos para mitigar as pragas e doenças apenas acentuam e retroalimentam os danos.
Entretanto, o problema de ecossistemas com cadeias alimentares interligadas é tratado superficialmente, quase como um tabu, pela ONU. As conferências sempre tendem a apresentar a humanidade como proprietária do resto dos seres vivos e do ambiente. Daí, os nomes antagônicos dos encontros mundiais sobre o meio ambiente e desenvolvimento [humano] que se repetem a cada década, sem avanços significativos de estratégias efetivas para devolver o equilíbrio à biosfera.
Enquanto há cinco séculos as viagens internacionais eram privilégio de uns poucos desbravadores, atualmente chegam a 40 milhões de voos anuais, transportando 4,1 bilhões de passageiros – metade da humanidade. Além de esses veículos – aviões, navios, trens, automóveis – poluirem a atmosfera, as viagens abriram um caminho sem precedentes para o transporte intercontinental de doenças infecciosas e pragas que podem afetar a saúde das plantas e do resto dos seres vivos nos respectivos destinos. São vírus, bactérias, esporos de fungos, insetos portadores de patógenos, roedores vetores de doenças e alimentos potencialmente contaminados que, há 500 anos, ficavam bastante restritos aos seus locais de origem.

O desafio da sustentabilidade

Quando se fala de saúde, não se pode deixar de discutir a doença. Nos animais,  médicos, veterinários e terapeutas geralmente procuram tratar o indivíduo e fazer profilaxia na população afetada no momento. Nas plantas alimentícias, geralmente se adota a prevenção, usando substâncias químicas aplicadas sobre a superfície para repelir infestações, mas também se introduzem espécies transgênicas já resistentes a pragas e micróbios.
A aspersão por aviões de grandes quantidades de agrotóxicos tem uma série de efeitos colaterais, matando espécies que não são o alvo do ataque, como os polinizadores, e poluindo drenagens de água, frequentemente até muito distantes das plantações onde houve a aplicação original. Os efeitos dos agrotóxicos sobre a saúde de humanos e seus animais domesticados ainda são um tabu, em meio a uma guerra silenciosa entre os grandes fabricantes desses produtos e as potenciais vítimas.
Os organismos que são geneticamente modificados (OGM) para desenvolverem mais resistência a pragas, doenças e – pasmem! –  herbicidas (é o caso da soja Roundup Ready) dividem a sociedade. De um lado, estão os defensores dos OGM, que acham que a nossa população gigantesca e crescente continuará sustentável. De outro, estão os cientistas preocupados com os efeitos visivelmente apocalípticos sobre a fauna de invertebrados, temendo ou já sofrendo problemas de saúde decorrentes de tais venenos.
O diálogo parece estar distante. Mas, se olharmos o repertório de maior volume do crescente agronegócio que assola o Centro-oeste, Sudeste e Norte do país, um fato interessante salta aos olhos: soja, milho e cana-de-açúcar têm um denominador comum – a primeira se autopoliniza enquanto as duas últimas são polinizadas pelo vento (todas as três culturas independem dos insetos). A supressão da vegetação nativa para o plantio justamente desses insumos não parece mera coincidência.

Em suma, não vejo boas perspectivas para a saúde das plantas, a não ser que a humanidade mude seu comportamento. Nem ouso especular o que acontecerá na natureza quando o vento levar o pólen de uma planta geneticamente modificada para uma flor de uma variedade nativa. Como disse o naturalista britânico David Attenborough, “quem acredita em crescimento infinito em um planeta fisicamente finito, ou é louco, ou é economista”.

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