É humilhante que o país continue suportando a vergonheira nos seus Poderes
O Brasil não tem governo e é
difícil saber o que lhe resta
Janio de Freitas, Folha de S. Paulo
·
Bolsonaro
teve uma ideia. Ofertou-a a você, eleitor talvez inseguro entre os possíveis
destinos do seu voto. Bolsonaro criou a chave atualizada para o voto justo,
consciente e consequente. “Você quer reeleger um cara ou não. Vê o que ele fez
durante a pandemia. Vê se você concorda com as medidas que ele tomou, se fez o
que você achava que tinha que fazer ou não. E você decide o seu voto.”
É uma chave
suficiente para lançar a ambição reeleitoral e o próprio Bolsonaro, e antes alguns
prefeitos, na famosa lixeira da história. É ainda a resposta do eleitor a quem
o abandona aos piores riscos, se não já à vitimação perversa, à ausência
inapagável de familiares. É a resposta necessária para compensar, ao menos no
plano individual, o escapismo acovardado e vendilhão dos apelidados de
autoridades institucionais. As figuras minúsculas incumbidas de resguardar a
população, e seu país, da sanha louca que não os quer sob a proteção nem
de incertas vacinas.
Surpreendo-me
no dever de dar a João Doria o reconhecimento da
única reação adequada ao desaforo feito ao país por Bolsonaro. “Não abrir mão”
da sua “autoridade” para cancelar uma providência antipandemia, por politicagem
obtusa, não é ato de autoridade. É o que disse Doria em seu momento até agora
único: “O presidente da República negar o acesso a uma vacina aprovada pela Anvisa, em meio a
uma pandemia que já vitimou 155 mil brasileiros e deixou 5,1 milhões infectados,
é criminoso”.
O Brasil não
tem governo. E é difícil saber o que lhe resta, inclusive vergonha. Seu nome é
posto em acordo de um punhado de ditaduras contra direitos das mulheres. O governo Trump
manda a Brasília uma comissão para acordos econômicos. Econômicos? O chefe da
delegação foi o secretário de Segurança Nacional dos Estados Unidos. O grupo,
na verdade, veio pressionar os generais de Bolsonaro e outros da ativa no
Exército contra a China.
Pressão em
especial contra a adoção do sistema 5G da Huawei, o mais avançado em prodígios da
comunicação (os Estados Unidos estão com anos de atraso nesse campo). No seu
disfarce habitual, que é um suborno nunca pago por completo, o governo Trump
acenou com US$ 1 bilhão em ajuda, mas para comprar componentes americanos que
substituam os da China em uso na telefonia daqui.
A Amazônia e o Pantanal ardem, e os 1.600
combatentes do fogo recebem ordem de voltar às bases, porque não foram
disponibilizados R$ 19 milhões que pagassem três meses de salários em atraso.
No mesmo dia, Paulo Guedes discursa com pedido de dinheiro a investidores
americanos e lhes diz: “Nos ajudem, em vez de só criticar. Toda essa história
de matar índios, queimar florestas, é exagero”. Saíam os dados do Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais: em setembro foram detectados 32.020 focos na Amazônia,
60% acima de setembro do ano passado. Na mesma comparação mensal, o aumento do
fogo no Pantanal chegou a 180%, com o maior quadro de incêndios de sua
história.
O cinismo, como o de Paulo Guedes, não pega mais. Nem por
isso deixa de crescer. É o idioma desses que se passam por governo, dos que se
deixam desmoralizar por Bolsonaro e desmoralizam seu generalato, dos que não
podem fazer sessões no Supremo e podem fazer almoços e jantares com Bolsonaro e
outros carnavalescos morais. Ao eleitor, é só não esquecer a ideia de Bolsonaro
para escolher o voto. Mas é humilhante que o Brasil continue suportando, apenas
para proveito do raso segmento de influentes, a vergonheira que se passa nos
seus Poderes.
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