O truque e a esperança
Luciano Siqueira
Por mais bem
informado que esteja, confesso que me faço sensível a qualquer notícia, ou
boato, de que a vacina contra a Covid-19 está às portas e que já podemos sonhar
com o novo normal.
A esperança
é própria da condição humana. Em qualquer circunstância.
Eu a
alimento sempre.Inventei até um truque para mantê-la viva em meu peito em
momentos extremamente difíceis.
Comecei
quando fiz o vestibular para Medicina, na Universidade Federal de Pernambuco. À
época o curso na FESP, hoje UPE, era pago, nem me inscrevi.
A disputa
era ferrenha. E eu guerreava sob notórias condições de desigualdade: trabalhava
os dois expedientes e frequentava um colégio público de periferia à noite, que
ensinava quase nada.
Tive que me
virar sozinho, num esforço quase sobre-humano.
Na fase
final dos estudos, o fiz em parceria como meu colega do Clube de Ciências,
Alírio, de quem me tornei irmão durante o curso médico e na militância
partidária.
Ao se
iniciarem as provas, via concorrentes chegarem em carrões, a trocarem formulas
químicas em voz alta...
Pensei:
esses têm a obrigação de tirar as melhores notas; eu sou um freelance, se não
conseguir agora tentarei outras vezes. E lancei mão do truque: daqui a 5 anos
recordarei esse momento numa boa.
Então fiquei
tranquilo, fiz boas provas, fui aprovado.
Outra
ocasião, muito mais dramática, foi quando da minha prisão na ditadura militar.
Durante 1 mês e 28 dias em diferentes cárceres clandestinos, sofri bárbaras
torturas. Pensei que não sobreviveria.
Se eu
sobreviver, daqui a 5 anos recordarei esse inferno com o espírito de quem
venceu e segue adiante – repetia para mim mesmo.
O truque deu
certo mais uma vez. Mantive a serenidade e pude, ao longo da vida, sobrepor às
imagens da dor muitas outras sensações gratificantes.
Meu truque
agora é pensar que daqui a um quinquênio, se estiver vivo, recordarei os horrores
da pandemia com o olhar de brasileiro que, apesar de Bolsonaro e sua corja, foi
capaz de vencer e sobreviver.
[Ilustração: Pablo Picasso]
A História revisitada inspira a luta cotidiana https://bit.ly/2HCH9ue
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