A interseção entre raça e voto nos EUA
Cláudia Trevisan*, no Blog do
Walter Sorrentino
O
grau de participação de diferentes grupos demográficos é crucial para definir o
resultado das eleições nos EUA, onde o voto não é obrigatório e ganha o partido
que levar mais simpatizantes às urnas. Mas o jogo não é apenas estimular sua
base. Em vários estados, vigoram regras que deprimem ou suprimem a participação
de segmentos da população propensos a votar no Partido Democrata, em particular
negros e hispânicos.
Os afro-americanos,
que representam 13% do eleitorado, são o segmento com o maior percentual de
preferência pelo Partido Democrata. Na eleição de 2016, 91% dos eleitores
negros votaram na democrata Hillary Clinton. Apenas 4% optaram pelo republicano
Donald Trump. Entre os hispânicos, a candidata obteve 66% dos votos.
A expectativa
em 2020 é que um número ainda maior de afro-americanos votará no ex-vice-presidente
Joe Biden, que contou com o apoio decisivo desse grupo demográfico
para vencer as primárias do Partido Democrata. Mas milhares de eleitores negros
continuar a enfrentar dificuldades ou barreiras explícitas para acessar as
urnas, um século e meio depois de terem obtido o direito de voto e cinco
décadas depois que o movimento pelos direitos civis tentou tornar essa promessa
em realidade.
Nos EUA, as
eleições são reguladas pelos 50 Estados, e não por uma lei federal, em uma
colcha de retalhos na qual a facilidade do acesso às urnas varia de acordo com
a geografia. A interseção
entre voto e raça remonta ao período de segregação que imperou
nos estados americanos do Sul depois da Guerra Civil (1861-1865). Vencido pelo
Norte abolicionista, o conflito colocou fim à escravidão, mas não à
discriminação.
Em 1965, o
Congresso aprovou o Ato dos Direitos do Voto, que obrigou os estados do Sul a
pedirem autorização ao governo federal para implementar qualquer medida que
implicasse restrições ao voto. A determinação vigorou até 2013, quando foi
derrubada pela Suprema Corte.
Desde então,
pelo menos seis estados do Sul aprovaram leis que exigem a apresentação de
documentos governamentais com fotos para votar. As medidas são consideradas
restritivas por entidades de defesa dos direitos civis e afetam de
maneira desproporcional os pobres, negros e outras minorias.
Para entender
como isso é possível é preciso ter em mente que o governo federal americano não
emite a seus cidadãos um documento nacional de identificação como o RG no
Brasil. O documento com foto mais usado no país é a carteira de motorista, mas
consegui-la custa dinheiro, a habilidade de dirigir e, em geral, a propriedade
de um carro.
A obtenção de
outros documentos também impõe custos aos cidadãos, na forma de despesas de transporte,
perda de horas trabalhadas e taxas oficiais. A American Civil Liberties Union,
a principal entidade de defesa dos direitos civis nos EUA, calcula o gasto
entre US$ 75 (R$ 424) e US$ 175 (R$ 989).
Estima-se que
21 milhões de americanos, o equivalente a 11% dos cidadãos, não possuem um
documento de identificação emitido pelo governo. Pesquisa de 2018 do Public
Religion Research Institute e da revista The Atlantic mostrou que 9% dos
eleitores negros e hispânicos relataram ter sido informados que não possuíam
documentos de identificação corretos para votar quando compareceram às urnas.
Entre os brancos, o percentual era de 3%.
Índice ainda
maior de negros e hispânicos, 16%, disse não ter conseguido se liberar do
trabalho para votar, o dobro do percentual registrado entre os brancos. As
eleições nos EUA não são realizadas em domingos ou feriados, mas sim em uma
terça-feira de atividade comercial normal. Há votação antecipada na maioria dos
estados, mas os prazos variam e nem sempre as urnas estão abertas aos domingos.
A população
afro-americana, em particular os homens, também sofre de maneira
desproporcional as consequências da conexão entre o direito ao voto e o sistema
criminal. Os EUA são o único país desenvolvido em que condenados por crimes
podem perder o direito ao voto por toda a vida. Em vários estados, eles
continuam à margem do sistema eleitoral mesmo depois de cumprirem suas penas.
O Sentencing
Project, uma ONG dedicada à reforma do sistema criminal, estima que 2,23
milhões de americanos que já saíram da prisão continuam sem direito de votar em
11 estados, que suspendem seus direitos políticos de maneira vitalícia.
Incluindo pessoas que ainda cumprem pena, o universo dos excluídos sobre para
5,2 milhões. O Sentencing Project estima que 6,2% dos adultos negros estão
impedidos de votar em razão da restrição. No restante da população, o
percentual é de 1,7%.
O líder no
ranking era a Flórida, um dos mais importantes estados pêndulo – aqueles que
oscilam entre republicanos e democratas e acabam decidindo as eleições. Em
2018, 65% dos eleitores da Flórida votaram por eliminar a restrição e restaurar
os direitos políticos dos que já haviam cumprido suas penas (com exceção dos
condenados por homicídio e crimes sexuais).
A decisão não
foi plenamente implementada. O governador e a Assembleia Legislativa, sob o
comando do Partido Republicano, aprovaram legislação que condiciona o benefício
ao pagamento de todas as multas pecuniárias pendentes. Como resultado, 900 mil
cidadãos da Flórida não poderão votar em 2020.
* Ex-correspondente do jornal “O Estado de S.Paulo” nos EUA e na
China, autora dos livros “Os Chineses” e “China – O Renascimento do Império”, e
mestre pela Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns
Hopkins
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