Vencedora do Jabuti, Cida Pedrosa une o épico com a cultura popular
Poesia de
'Solo para Vialejo' mistura visão individual e coletiva numa estrutura em que a
música tem papel central
Leonardo Gandolfi, Folha de S. Paulo
Ao longo dos
últimos anos, incluindo o fatídico 2020, tem surgido no Brasil uma produção
riquíssima de livros de poesia. Parece que o gênero —nas suas mais diversas
manifestações— tem conseguido nomear feridas sociais, elaborando o luto do
tempo difícil em que vivemos.
Nesse sentido,
não é surpresa que o grande vencedor do prêmio Jabuti deste
ano tenha sido o livro “Solo para Vialejo”. Nele, a pernambucana
Cida Pedrosa não traz uma versão cômoda da poesia como gênero.
Ao contrário, ela a perturba, fazendo cruzar, de modo singular, registro épico,
poesia visual e cultura popular.
De partida, o
poema-livro formula uma versão sertaneja de Brasil, ao pôr em foco a violência
com indígenas e negros no Nordeste. E aos poucos os versos vão se concentrando
na travessia do litoral até o sertão.
Justo esse foi
o percurso da população nativa ao fugir dos colonizadores, numa viagem que
deixou rastro para que os negros também pudessem escapar. Diz o poema que “um
deus branco e cruel que nos fez desejar/ caminhar em romaria rumo ao sertão”.
E quando tal
deslocamento é pensado em meados do século 20, o sertão de Pedrosa se
materializa em Bodocó, cidade natal da poeta, que passa a ser também uma
espécie de alegoria do país.
Uma vez lá, os
versos misturam as perspectivas coletiva e individual da personagem da autora,
sempre privilegiando o ponto de vista múltiplo. E tal pluralidade se dá tanto
nos registros —do prosaico à experimentação sonora— quanto na diversidade dos
focos de enunciação.
Por falar em
vozes, vale destacar a presença das muitas referências musicais, que, ao fim,
constituem um grande acervo montado pelo livro. Povoam suas páginas Luiz
Gonzaga, Etta James, Jackson do
Pandeiro, Robert Johnson e também Mãe Hermínia, parteira da cidade
que dedilhava a "Ave Maria" de Schubert nas missas.
Vale dizer
ainda que “vialejo” é o nome da gaita que a poeta ganhou do pai na infância,
mas que nunca aprendeu a tocar.
Partindo assim
na direção das narrativas individuais, o papel central da música acaba por dar
a ver a virada memorialística dos versos. Não à toa, o Clube Sociedade União
Bodocoense, com suas festas e causos, se torna epicentro do poema.
Aliás, uma das
histórias da cidade se refere justo à capa do livro, que traz uma foto antiga
da Jazz-Band União Bodocoense. A autora se lança em busca de descobrir e
homenagear os músicos ali presentes –“quem são estes cavaleiros do/ apocalipse
new andarilhos de rostos/ apagados silenciados nas lembranças/ de uma cidade
sem presente.”
A poeta
esbarra, no entanto, nos limites da história oficial. Estão documentados os
nomes dos músicos brancos, mas não o dos negros. “Cadê a linhagem dos negros
que tocavam banjo?”, pergunta a poeta, e sua pergunta ecoa a rasura a que é
constantemente submetida a memória da população negra no país.
Pensando nisso
e na estrutura musical do livro, é interessante destacar que o início do poema
retorna diversas vezes, se metamorfoseando ao longo das páginas. “Parto em
busca de ti// negro ser” que vai se tornando apenas “negro ser”. Refrão que
depois é repetido insistentemente até dizer “ser negra”.
A simples
mudança de lugar do vocábulo “ser” também é uma mudança da classe gramatical
que faz com que, no livro, a palavra “negra(o)” deixe de ser exclusivamente um
estado e passe a ser também uma ação. Tanto uma tomada de consciência do poema,
quanto um desejo de projeto de país.
Veja: Poesia
situada no tempo político não se confunde com panfleto https://bit.ly/3sXHeMs
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