Artigo na Lancet escancara ataques à ciência do governo Bolsonaro na pandemia de Covid-19
Pedro Hallal, ex-reitor da Ufpel e
pesquisador à frente do maior estudo sorológico do coronavírus no país, sofreu
ataques pessoais do presidente e de sua ala ideológica
Ana Bottallo, Folha de S.
Paulo
“S.O.S.: A
ciência brasileira está sob ataque”. Esse é o título de um artigo publicado na
prestigiosa revista científica The Lancet nesta sexta-feira (22), escrito pelo
epidemiologista e ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) Pedro
Hallal.
No texto,
escrito para a seção Correspondências da revista, o pesquisador elenca diversos
eventos de descrédito à
ciência e ataques diretos aos pesquisadores brasileiros
orquestrados pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e seus apoiadores.
As
consequências dos ataques, diz Hallal, levaram o país a ocupar a trágica
posição de segundo colocado em número absoluto de mortes por Covid-19 e
terceiro em casos registrados no mundo. “Como cientista, tendo a não acreditar
em coincidências.”
Apesar de ter
acompanhado as políticas de condução da pandemia, que classifica serem muito
piores do que as declarações do
presidente, que já chamou de “gripezinha” a maior emergência sanitária do
último século e disse “E daí? Não posso fazer nada”, em resposta a jornalistas após
ser questionado sobre o recorde de mortes no país, em abril de 2020, Hallal
resolveu escrever a carta à Lancet após sofrer ele mesmo ataques pessoais.
O agora
ex-reitor da Ufpel (seu mandato acabou no último dia 8 de janeiro) conta que
participou no último ano de três reuniões no Ministério da Saúde, as duas
primeiras para discutir o Epicovid-19,
estudo sorológico do coronavírus que encabeçava como pesquisador principal,
e a última em dezembro para discutir ações não relacionadas à pesquisa (que
acabou em junho). Quatro dias após a última reunião, em Brasília, apresentou
sintomas da Covid-19.
“A minha
infecção foi divulgada e usada por defensores do governo. Eu fui atacado pelo
deputado bolsonarista Bibo Nunes (PSL-RS) por ser hipócrita, por falar para as
pessoas fazerem uma coisa [o distanciamento social] e fazer outra. Fui
questionado durante uma entrevista a uma rádio em Guaíba (RS) e o próprio
presidente tuitou no dia 14 de janeiro o trecho da entrevista na qual sou
atacado por esse assunto.”
O pesquisador
diz que, após ver a derrocada de cientistas em cargos importantes que se
posicionaram contrários ao que o governo pretendia disseminar, como o ex-diretor do
Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) Ricardo Galvão [que
divulgou os dados de desmatamento em 2019 e foi exonerado por isso] e os ex-ministros
da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich [que não
concordaram com as medidas de enfrentamento do vírus], não imaginava ser o
próximo.
O Epicovid-19
já havia encontrado resistência no Ministério da Saúde ao apontar para a maior incidência
da Covid-19 em indígenas entre os grupos de cor ou etnia autodeclarada.
A pasta questionou os dados e cortou o financiamento
do estudo após a segunda etapa —estavam previstas três fases.
Para o
pesquisador, não é atacando a ciência que o país vai conseguir enfrentar a
pandemia. As medidas adotadas até aqui pelo governo são desastrosas: faltam
testes, não há rastreamento de contatos, a adesão ao distanciamento social está
cada vez mais baixa.
“Apesar de
muito esforço dos cientistas do [Instituto] Butantan e da Fiocruz, fortemente
envolvidos na corrida pela vacina, não houve por parte do governo esforços para
a compra de seringas e agulhas para começar a campanha de vacinação”, diz o
artigo.
O autor cita,
inclusive, um editorial da
mesma revista The Lancet, publicado em maio de 2020, em que os
editores afirmam que "a maior ameaça à resposta do Brasil à Covid-19
parece ser seu presidente, Jair Bolsonaro, mais empenhado em uma guerra contra
a ciência do que contra o novo vírus".
“Coincidentemente
ou não, no dia que o presidente Bolsonaro me atacou no Twitter, Manaus estava
enfrentando a pior situação desde o início da pandemia, com a falta de oxigênio
e pacientes morrendo asfixiados. Na mesma semana, o Ministério da Saúde teve
uma publicação no Twitter marcada por violar as regras da plataforma ao
disseminar informações enganosas e potencialmente danosas relacionadas à
Covid-19.”
Para Hallal,
os ataques do
governo à ciência não começaram na pandemia, mas foram
intensificados por ela. "Os cortes do presidente à ciência e
tecnologia desde o início do seu governo e o negacionismo, inclusive dizendo —o
único chefe de Estado que disse isso, para meu conhecimento— que não vai tomar
a vacina [contra Covid-19], já eram preocupantes."
“Essas
políticas têm um preço. Se o Brasil, cuja população de 211 milhões de
habitantes representa 2,7% da população mundial, tivesse contabilizado 2,7% do
número de mortes global por Covid-19 [considerando a mortalidade de Covid em
torno de 2,1%], 56.311 pessoas teriam morrido. No entanto, até o último dia 21
de janeiro, 212.893 brasileiros morreram por Covid-19. Em outras palavras, são mais de 150 mil
vidas perdidas no país devido à condução abaixo do esperado da pandemia.
Atacar os cientistas definitivamente não vai resolver o problema”, finaliza o
artigo.
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