14 fevereiro 2021

Carnaval que não houve

Atrás do trio elétrico

Cícero Belmar

 

Isso aqui iria pegar fogo não fosse a pandemia estar decretando o que abre e fecha nas cidades. Nesta semana pré-carnavalesca, nos anos anteriores, as multidões já subiriam e desceriam ladeiras em Olinda e Salvador; o boneco gigante do Galo da Madrugada paralisaria o centro do Recife; blocos e escolas de samba invadiriam São Paulo e Rio.

2021 inscreve-se na história contemporânea como o ano sem Carnaval. Goste-se ou não, a suspensão foi o melhor que poderia nos ocorrer. A piora nos casos de coronavírus, no meu entendimento, foi consequência, em parte, das aglomerações na campanha eleitoral do ano passado. De lá para cá, o bicho pegou. Neste momento em que novas cepas do Sars Cov-2 se espalham, é preciso trancar a população em casa de novo.

Em condições normais, porém, não faltaria tema para o folião fazer deboche nos blocos. Sabe-se que o povo encontra lugar de expressão nas ruas, no Carnaval, fazendo caricaturas e ridicularizando com os corruptos. Nunca na história deste País tivemos tantos e de tantas espécies.

Carnaval tem uma ambiguidade curiosa. Durante a festa, o povo ri das roubalheiras e trairagem de certos políticos, mas as pessoas que fazem e acham graça, tiram as máscaras, e têm potencial de ir às ruas para se manifestar quando a festa acaba. A energia da animação que impulsiona os blocos é a mesma da rejeição que movimenta protestos.

Talvez tenha sido por isso, por esta capacidade de rir de si mesmo que, num passado já remoto, refinados leitores de Platão, Aristóteles, Jean-Jacques Rousseau e Karl Marx achavam que o Carnaval era uma prática de alienados políticos. Ou coisa de despreocupados com relação aos problemas sociais que flagelam o País. Juro.

Tese reforçada pelo fato de que, realmente, o Carnaval é um período adequado para as pausas; para as pessoas se desligarem e cair na folia. Isso não quer dizer que percamos a percepção dos acontecimentos, nos quais estamos inseridos. Certo é que, quando fevereiro chega, o povão que já tem pouca opção de lazer, se joga na esbórnia. Quem não?

Havia quem torcesse o nariz para a nossa maior festa popular. E a lógica era a seguinte: o povo não poderia ser, ao mesmo tempo, consciente, desenvolvido, e gostar de folia.

Aqui cabe uma fofoca de academias: dizem que quando o baiano Jorge Amado escreveu O País do Carnaval, seu romance de estreia, não gostava dos folguedos. Na narrativa, a personagem Paulo Rigger, um intelectual que se formou nos bancos de universidades europeias, critica a qualidade festeira do brasileiro. E bate valendo no Carnaval.

Passados os anos, agora já maduro, o meu Amado Jorge mudou de entendimento e compreendeu que a festa era a maior expressão cultural do povo. Para se redimir, escreveu o monumental Dona Flor e Seus Dois Maridos. Ganhou a literatura brasileira.

Voltemos ao que deixei no começo, o cancelamento oficial foi medida acertada dos gestores. Fiquemos, pois, em casa, para irmos atrás do trio elétrico no ano que vem. Já sabe, né? Lembrem-se da personagem Vadinho, marido de Dona Flor, que tombou na fervura de um bloco. As razões de saúde foram outras; a situação, idem. Mas o fato inquestionável é que aquele foi o seu último carnaval. Fica a dica.

*Cícero Belmar  é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras. 

·         Veja: Cartas a um jovem poeta https://bit.ly/39XDD8D

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