Definição do rapaz
Paulo Mendes Campos
Em 1946, Rubem Braga e eu,
então moradores de uma casa à rua Júlio de Castilhos, resolvemos estudar
inglês. Um anúncio de jornal nos fez decidir sobre o professor. Nós lhe
telefonamos, ele veio, combinou-se o preço, aulas três vezes por semana.
Tratava-se de um inglês
alto, de testa estreita, cinquentão. As aulas, às oito horas da manhã, para
dizer a verdade, não eram muito excitantes. A fim de fugir delas, passamos a
usar do expediente primário de mandar a cozinheira dizer que não estávamos em casa.
Entretanto, o empedernido súdito de sua majestade não acreditava na desculpa:
– Oh, as preguiçosos ainda
eston no cama.
E gritava escada acima:
– Mim está aqui esperando
preguiça brasileira.
Não havia jeito, senão
descer. E tome verbo irregular. Incapazes de liquidá-lo, sugerimos que, em vez
de gramática, fôssemos traduzindo obras literárias, que isso era mais
agradável, etc. Foi o diabo. Não me lembro de ter visto, em toda a minha vida,
mais inenarrável expressão de estupor do que o dia em que traduzimos um soneto
de Ezra Pound, em que o poeta se dizia uma árvore de galhos abertos, no meio de
um bosque. O professor arregalou os olhos com um tal brilho de incompreensão
total e absoluta da imagem poética que fomos obrigados a desistir
definitivamente da poesia. Nunca mais se falou nisso.
E como as aulas
subsequentes continuassem monótonas, apelamos para a prosa. A fim de aliciá-lo,
procuramos afagar seu nacionalismo falando em Bernard Shaw. Pasmem-se os
incrédulos. O mestre fez um ar polido de curiosidade e perguntou:
– Bernard Shaw? Quem é ele?
Pois o homem não estava
fazendo humour não. Era no duro, nunca ouvira falar em Bernard Shaw. Trouxemos,
então, a peça Androcles and the Lion e começamos a traduzi-la. Dessa vez, a
coisa ia melhor. O professor mostrava algum interesse pelo enredo e, para a
nossa admiração, pediu o livro emprestado, a fim de lê-lo em casa.
Levou uma semana com o
livro. E um dia veio até nós com o ar astuto de quem descobriu a brincadeira
que estão preparando para ele. Entregou-nos o livro se rindo muito:
Mim pensou que era coisa
séria.
– I beg your pardon,
exclamamos em coro.
– Essa peça é somente um
joke, disse ele. Leão no fim dança com homem. Ih, ih, ih.
[Ilustração: Pindaro Castelo Branco]
Veja: Imunidade parlamentar pra quê? https://bit.ly/2ZHFqJV
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