As pedaladas de Guedes & Bolsonaro
Paulo Kliass, Carta Maior
Lá se vão mais de cinco anos daquela trágica noite, quando o
plenário da Câmara dos Deputados decidiu pela abertura do processo de
impeachment contra a Presidenta Dilma Roussef. Para além da mais pura ausência
de provas para justificar aquele golpe, a sessão presidida pelo deputado
Eduardo Cunha revelou-se um verdadeiro show de horrores. Um espetáculo
degradante para qualquer sociedade que se pretenda minimamente democrática e
civilizada. Dentre os inúmeros absurdos e crimes proferidos ao longo das inúmeras
declarações de voto, chamou a atenção a fala do então deputado federal, Jair
Bolsonaro. Ele rendia homenagem ao reconhecido assassino e torturador confesso
da época da ditadura militar, Coronel Brilhante Ustra, dedicando à memória do
carrasco o seu voto a favor do afastamento de Dilma.
O processo estava baseado em uma interpretação
casuística e tendenciosa de supostas irregularidades que teriam sido cometidas
pela equipe de governo no que se refere à política fiscal. Mas o próprio
processo deixou claro que não havia nenhuma evidência de que tais atos poderiam
ser caracterizados como “crime de responsabilidade”. A alternativa encontrada
para os que desejavam promover o afastamento de Dilma a qualquer custo foi o
bordão que passou a ser usado nas reuniões: ela seria punida pelo “conjunto da
obra”. Um absurdo político e jurídico!
Na tentativa de esticar a corda para buscar um
enquadramento, os grupos que propugnavam o impeachment passaram a acusar o
governo por práticas que já eram consolidadas em decisões do Tribunal de Contas
da União (TCU) como regulares e que vinham sendo adotadas por diversos governos
anteriores ao dela. Uma das mais escandalosas, por exemplo, identificava na
tradicional concessão de empréstimos a juros subsidiados pelo Banco do Brasil um
ato contrário à proibição realmente existente de as empresas estatais
concederem empréstimos ao Tesouro Nacional. Ora, o maior banco do governo
federal sempre havia sido reconhecido, ao longo de toda a sua existência, como
um banco agrícola por excelência. Ao ser responsável pela implementação de um
dos aspectos mais relevantes da política agrícola, ele antecipava aos
agricultores recursos a juros mais baixos do que os de mercado e posteriormente
fazia o ajuste de contas com o caixa central do governo. Ora, procedimento mais
do que correto e conforme às regras.
Pedaladas fiscais: desculpas
para o impeachment ilegal.
Enfim, ao longo do processo foram praticadas
diversas irregularidades e ilegalidades, pois a intenção maior era promover de
qualquer jeito o afastamento. Ao não conseguir identificar de forma clara e
objetiva nenhuma evidência de prática de ato irregular ao longo da gestão de
Dilma, buscou-se criar a narrativa de uma suposta “pedalada fiscal”. O
neologismo foi cunhado justamente para colocar uma nuvem de fumaça na ausência
de uma tipificação criminal que pudesse vir a ser atribuída a ela durante seu
mandato.
Pois ao final do mesmo ano, depois de consumado o
afastamento de Dilma, a equipe de Michel Temer encaminhou ao Congresso Nacional
a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, que ficou conhecida como a PEC
do Fim do Mundo. Transformada na Emenda Constitucional nº 95, a medida veio a
se transformar em um dos mais rigorosos instrumentos de legitimação da prática
do austericídio. Por meio dela, estão proibidos os reajustes dos valores das
despesas orçamentárias não-financeiras durante 20 longos anos. Para tanto, tal
medida criou o “Novo Regime Fiscal” com validade prevista de duas décadas, de
forma que as rubricas de gastos sociais, com pessoal e de investimentos, dentre
tantas outras, só podem ser majoradas de um exercício fiscal para o outro
segundo a inflação verificada no período.
O descumprimento de tal dispositivo draconiano tem
o significado de crime de responsabilidade e pode sujeitar o Chefe do Executivo
ao processo de impeachment. Ocorre que todos já havíamos advertido para os
riscos envolvidos na adoção de tal regra. A população aumenta de tamanho e
envelhece, a economia poderia crescer (não fosse a busca compulsiva dos últimos
governos pela recessão e pelo desemprego), eventos inesperados como a pandemia
passam a exigir mais verbas para determinados setores em caráter emergencial.
No entanto, a redação sugerida pela tecnocracia financista em 2016 não
apresenta nenhuma flexibilidade ou porta de saída para esse tipo de situação
extraordinária. A única despesa que tem autorização para crescer sem limites é
aquela de natureza financeira, ou seja, os gastos com pagamento de juros da
dívida pública. Nesse caso, uma eventual elevação desproporcional de um ano
para outro não implica em crime de responsabilidade. Uma loucura!
Austeridade de Guedes mata o país
e o povo.
Pois a partir do ano passado, o feiticeiro virou
contra o feiticeiro. A obsessão da turma de Paulo Guedes pelo cumprimento da
austeridade burra e cega coloca o governo Bolsonaro no foco do descumprimento
das mesmas amarras que eles tanto lutaram para impor ao País. Na verdade, a
crise potencializada pela pandemia deixaria a nu qualquer governo que
pretendesse lançar mão de políticas públicas para lutar contra a covid 19 e
para atenuar as sequelas humanas, sanitárias sociais, econômicas, ambientas e
de outra natureza provocadas pela doença. O Brasil está retrocedendo vários
anos em termos de crescimento de seu PIB e também de sua capacidade de
arrecadação tributária. Pela equação orçamentária, as receitas com impostos não
estão sendo capazes de cobrir as despesas compreensivelmente crescentes em tal
contexto. Nesse quadro, é também razoável a aceitação de déficits fiscais
temporários.
Mas o catastrofismo de plantão, sempre alardeado
pela turma da finança, agora pega em cheio a gestão de Bolsonaro & Guedes.
Justamente, os queridinhos que eles tanto apoiaram na corrida presidencial de
2018. Afinal, déficit nas contas governamentais e dívida pública em crescimento
são palavras impronunciáveis nas salas de jantar desses cavalheiros de bem. Mas
como combinar o respeito às regras da rigidez fiscal com um governo cuja
popularidade cai a cada anúncio das novas mortes provocadas pela pandemia?
Assim, alguma solução no plano institucional deve ser buscada para salvar a
pele da duplinha dinâmica. E assim vem aí o anúncio de um compromisso entre o
Executivo e o Legislativo para evitar que a promulgação do Orçamento para 2021,
aprovado pelo Congresso Nacional com meses de atraso, coloque em risco a
canetada do Presidente da República. Afinal, por muito menos - mas muito menos
mesmo! - Dilma Roussef foi afastada do Palácio do Planalto.
Caminhos para conferir uma aparência de legalidade
às pedaladas fiscais de Guedes & Bolsonaro existem. O mais adequado de
todos seria promover a revogação da EC 95 e terminar de vez com esse
faz-de-conta do austericismo financista. Outra possibilidade residiria na
decretação do estado de calamidade, como feito em 2020, de maneira a retirar a
validade das regras fiscais durante o tempo necessário ao restabelecimento de
alguma normalidade na vida nacional. Mas Paulo Guedes resiste a tais
alternativas, uma vez que qualquer uma delas teria o significado de tornar
claro seu retumbante fracasso na condução da política econômica de Bolsonaro.
Assim, o acordo prevê alguma gambiarra envolvendo a sanção da lei orçamentária
com alguns vetos, para depois estas mesmas despesas serem asseguradas por meio
de créditos extraordinários ao longo do período. Tudo para assegurar os quase
R$ 20 bilhões de emendas parlamentares incluídas pelo Relator e também as
verbas das contas obrigatórias do orçamento, que estavam abaixo do valor mínimo
devido.
Pedaladas sociais: crime de
responsabilidade.
Assim, o que se percebe é que as verdadeiras
pedaladas que foram colocadas em prática por Bolsonaro & Guedes não são
aquelas de natureza fiscal. O desastre provocado pela pandemia evidenciou que a
novidade trazida por esse governo genocida em termos de políticas públicas foi
outra. Ele tem promovido as pedaladas sociais. Desde o início do governo,
marcado por desemprego elevado e recessão acentuada, Guedes parece ter ignorado
a profundidade da crise social. O superministro sempre propôs a redução da
capacidade do Estado atuar em prol da maioria da população, assegurando os
serviços públicos previstos na Constituição. As propostas do governo se resumem
a privatização e desmonte das políticas sociais.
A prática das pedaladas sociais se caracteriza
pela redução sistemática das verbas orçamentárias para áreas essenciais como
saúde, assistência social, educação, previdência social e tantas outras. A
obediência à rigidez destrutiva das amarras fiscais é saudada como algo
positivo e apresentada à sociedade como um incompreensível sintoma de
“responsabilidade”. No entanto, em um período como o atual, fica mais do que
evidente que se trata de uma profunda irresponsabilidade social. Bolsonaro não
provê recursos para pesquisar e produzir vacinas. O governo não promove aumento
nas rubricas destinadas ao Sistema Único de Saúde (SUS). Guedes não inclui no
orçamento as gritantes necessidades de um auxílio emergencial a R$ 600 enquanto
durar a pandemia.
A sociedade brasileira aguarda ansiosa da CPI do
Genocídio os esclarecimentos a respeito de tais fatos. As pedaladas de
Bolsonaro & Guedes são o verdadeiro crime de responsabilidade.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas
em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal
Para sua informação: Três pontos sobre a CPI da Covid https://bit.ly/2P5l2AZ
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