Sala de espera
Luis Fernando
Veríssimo
Sala
de espera de dentista. Homem dos seus quarenta anos. Mulher jovem e bonita. Ela
folheia uma Cruzeiro de 1950. Ele finge que lê uma Vida dentária.
Ele
pensa: que mulherão. Que pernas. Coisa rara, ver pernas hoje
Ela
pensa: cara engraçado. Lendo a revista de cabeça para baixo.
Ele:
te arranco a roupa e te beijo toda. Começando pelo pé. Que cena. A enfermeira
abre a porta e nos encontra nus sobre o carpete, eu beijando o pé. O que é
isso?! Não é o que a senhora está pensando. É que entrou um cisco no olho desta
moça e eu estou tentando tirar. Mas o olho é na outra ponta! Eu ia chegar lá.
Eu ia chegar lá.
Ela:
ele está olhando as minhas pernas por baixo da revista. Vou descruzar as pernas
e cruzar de novo. Só para ele aprender.
Ele:
ela descruzou e cruzou de novo! Ai meu Deus. Foi pra me matar. Ela sabe que eu
estou olhando. Também, a revista está de cabeça pra baixo. E agora? Vou ter que
dizer alguma coisa.
Ela:
ele até que é simpático, coitado. Grisalho. Distinto. Vai dizer alguma coisa...
Ele:
o que é que eu digo? Tenho que fazer alguma referência à revista virada. Não
posso deixar que ela me considere um bobo. Não sou um adolescente. Finjo que
examino a revista mais de perto, depois digo "Sabe que só agora me dei
conta de que estava lendo essa revista de cabeça para baixo? Pensei que fosse
em russo." Aí ela ri e eu digo "E essa sua Cruzeiro? Tão
antiga que deve estar impressa em pergaminho, é ou não é? Deve ter desenhos
infantis do Millôr." Aí riremos os dois, civilizadamente. Falaremos nas
eleições e na vida
Ela:
ele vai falar ou não? É do tipo tímido. Vai dizer que tempo, né? A senhora não
acha? É do tipo que pergunta "Senhora ou senhorita?" Até que seria
diferente. Hoje em dia a maioria já entra rachando... Vamos variar de posição,
boneca? Mas espere, nós ainda nem nos conhecemos, não fizemos amor em posição
nenhuma! É que eu odeio as preliminares. Esse é diferente. Distinto.
Respeitador.
Ele:
digo o quê? Tem um assunto óbvio. Estamos os dois esperando a vez num dentista.
Já temos alguma coisa
Ela:
ele desistiu de falar. Gosto de homens tímidos. Maduros e tímidos. Ele está se
abanando com a revista. Vai falar do tempo. Calor, né? Aí eu digo "É
verão". E ele: "É exatamente isso! Como você é perspicaz. Estou com
vontade de sair daqui e tomar um chope". "Nem me fale em chope."
"Você não gosta de chope?" "Não, é que qualquer coisa gelada me
dói a obturação". "Ah, então você está aqui para consultar o
dentista, como eu. Que coincidência espantosa! Os dois estamos com calor e
concordamos que a causa é o verão. Os dois temos o mesmo dentista. É o destino.
Você é a mulher que eu esperava todos estes anos. Posso pedir sua mão em
noivado?"
Ele:
ela está chegando ao fim da revista. Já passou o crime do Sacopã, as fotos de
discos voadores... Acabou! Olhou para mim. Tem que ser agora. Digo: "Você
está aqui para limpeza de pernas? Digo, de dentes? Ou para algo mais profundo
como uma paixão arrebatadora por pobre de mim?"
Ela:
e se eu disser alguma coisa? Estou precisando de alguém estável na minha vida.
Alguém grisalho. Esta pode ser a minha grande oportunidade. Se ele disser
qualquer coisa, eu dou o bote. "Calor, né?" "Eu também te
amo!"
Ele:
melhor não dizer nada. Um mulherão desses. Quem sou eu? É muita perna pra mim.
Se fosse uma só, mas duas! Esquece, rapaz. Pensa na tua cárie que é melhor.
Claro que não faz mal dizer qualquer coisinha. Você vem sempre aqui? Gosto do
Roberto Carlos? O que serão os buracos negros? Meu Deus, ela vai falar!
-
O senhor podia...
-
Não! Quero dizer, sim?
-
Me alcançar outra revista?
-
Ahn... Cigarra ou Revista da Semana?
-
Cigarra.
Aqui
está.
-
Obrigada.
Aí
a enfermeira abre a porta e diz:
-
O próximo.
E
eles nunca mais se vêem.
[Ilustração: Andrzej Wróblewski]
.
Veja:
Uma dica de leitura para quem gosta de Ariano Suassuna https://bit.ly/3whh2hh
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