A indústria da raiva e do ódio
Marcelo Tognozzi, Poder360
Desde que
os humanos começaram brigar por comida, territórios, bens e riquezas temos uma
indústria da raiva a comandar nossos destinos. Ela ditou os ânimos da
Conferência de Berlim no inverno de 1885, quando a Europa dividiu a África e a
dominou de vez com exércitos movidos pelo ódio. Mario Vargas Llosa conta na sua
biografia de Roger Casement, herói da luta da Irlanda pela independência, que o
Congo Belga do Rei Leopoldo era dominado por um exército de homens treinados
para odiar os nativos.
Um deles,
conta Vargas, inventou uma corda feita com couro de hipopótamo curtido e
trançado, muito leve e resistente. Seu nome era monsier Chicot e seu látego
esfacelava a pele de ébano dos nativos do Congo que ousassem transpor seu
caminho. Para matar uma criança bastava um ou dois golpes. Quando se
aproximava, os nativos corriam gritando “Chicot”, “Chicot”. O invento virou
chicote, popularizou e passou a fazer parte da indumentária de todo e qualquer
soldado ou aventureiro que viesse a se embrenhar naquelas terras. A indústria
da raiva acabara de ganhar um novo símbolo. Aquele Congo de Leopoldo produzia a
melhor borracha e dava ao rei belga um lucro de 700% em cada quilo.
Aquele
século 19 perto do fim começara e terminaria com guerras históricas – de
Napoleão ao conflito hispano-americano em que Madrid perdeu Cuba e Filipinas
para os Estados Unidos. Os confortos domésticos, os remédios, roupas e
transporte eram para poucos, especialmente no interior. Não havia, como hoje,
abundância de comida.
Foi
naquele interior da Europa, pobre, traumatizado por ciclos de guerras, que um
menino de 9 anos, filho do padeiro, cruzou a rua do povoado de Maisongoutte, na
Alsácia, perto da sua cidade, na manhã do dia 4 de julho de 1885, para comprar
fermento. Ele foi atacado de surpresa por um cachorro. Joseph Meister tentou se
defender, correu, mas o animal era grande, ágil e novamente o mordeu. Um
serralheiro ouviu seus gritos e o salvou batendo no cão com uma barra de ferro.
Voltou para casa com parte do braço direito e das pernas dilacerados pelas 14
mordidas que recebeu.
A França
vivia uma epidemia de raiva e logo correu a notícia de que Joseph fora atacado
por um cachorro louco. A mãe do menino desesperou. A única salvação era tentar
chegar o mais rápido possível a Paris, a mais de 400 quilômetros de distância
do pequeno povoado de Steige, onde a família vivia. Tinha de encontrar
rapidamente Louis Pasteur, o cientista que desenvolvera uma vacina para a
hidrofobia canina, porém nunca testada em humanos.
Encontrar
Pasteur foi a pior parte. Químico festejado e premiado, era odiado por uma
legião de invejosos, muitos deles médicos que o acusavam de charlatanismo. Era
uma raiva crônica, mesclada com inveja. A mãe de Joseph caçou o cientista por
Paris, recusando todo tipo de oferta para curar o filho. Até que conseguiu
chegar à Escola Normal, na rue d’Ulm, onde Pasteur trabalhava. Ele era um
senhor de 62 anos, olhinhos atentos e espertos. Ficou emocionado com a história
daquela mãe que viera de tão longe e foi sincero: “Nunca testei minha vacina em
humanos, tenho receio de que não possa funcionar. Sou químico, não sou médico”.
A mulher insistiu, implorou. Pasteur consultou dois médicos, Vulpian e
Grancher, que apoiaram o tratamento.
Mãe e
filho foram alojados na Sala de Esgrima da escola. Ali naquele cômodo onde os
jovens aprendiam a atacar e defender, usar a espada para ferir ou matar o
inimigo odiado, o menino Joseph foi curado da raiva. Seu tratamento com doses
crescentes de vacinas durou 10 dias. Pasteur viveu um imenso estresse, com
noites em claro e um ansiedade louca. No fim de algumas semanas, sem apresentar
sintomas, o menino estava salvo. No ano seguinte, das 726 pessoas vacinadas,
apenas 4 morreram. Pasteur domara a raiva.
Quase 140
anos e 2 guerras mundiais depois, a indústria da raiva segue transformando o
mundo. A direita odiando a esquerda, as sociedades se dividindo e subdividindo
em grupos com cada vez menos tolerância. Em menos de 1 semana, 2 articulistas
da Folha de S. Paulo, do alto das suas soberbas ignorâncias de vivandeiras de bivaques,
incitaram o Exército a um golpe contra o presidente da República, mostrando ao
respeitável público que a democracia deles não é igual a minha, a sua ou a dos
americanos e europeus. Sonham com um Juan Maria Bordaberry, o civil que em 1973
fechou a Câmara e o Senado do Uruguai com apoio das Forças Armadas. Assim, as
ditaduras discretas se transformam em ditaduras assanhadas e, rapidinho, em
escancaradas. Ainda bem vivemos uma democracia no Brasil e ninguém será preso
por pregar o golpe. São filhos desta nova indústria da raiva insana, indomável,
exibicionista a transformar parte da nossa mídia num esgoto fedorento.
Louis
Pasteur curou Joseph e eles se tornaram amigos de fé e confiança. Com 14 anos o
menino foi trabalhar com o mestre. Fez de tudo um pouco no Instituto Pasteur
até que virou seu zelador. Hemiplégico, depauperado por 2 derrames, o cientista
morreu 10 anos depois de aplicar a primeira dose da sua vacina.
Joseph
viveu até junho de 1940. Quando o ódio invadiu Paris a bordo dos blindados alemães,
ele percebeu-se à beira de um abismo de violência, dor e soberba, muito pior do
que a era do chicote de couro de hipopótamo. Contra a poderosa indústria do
ódio nazista e suas armas não haveria salvação, não haveria vacina, nem cura.
Joseph viu os nazis tomarem o Instituto Pasteur, subverterem a ciência,
banalizarem a vida. Ele, que driblou a morte na Sala de Esgrima daquele prédio,
estava encurralado. Então fez a única coisa que restava ser feita. Serenamente,
Joseph acariciou seu revólver e apertou o gatilho, deixando que flutuasse sua
alma aliviada.
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