O aumento das milícias expõe a ausência do Estado
José Dirceu, Poder360
Em 6 de maio, ao ver as
cenas da chacina de 28 jovens da comunidade de
Jacarezinho pela Polícia Civil do Rio de Janeiro às ordens do governador Cláudio Castro (PSC), me veio à memória
nossa longa e tenebrosa história de chacinas e suas origens num Brasil remoto e
bem próximo a nós. No passado tínhamos os jagunços e os pistoleiros de aluguel,
que sobrevivem até hoje alugando suas mãos e armas para assassinar líderes
rurais e ambientalistas, sindicalistas e políticos.
Lembro aqui 3
líderes, vítimas de pistoleiros de aluguel em pleno vigor da vida e da
militância: Margarida Alves, líder dos camponeses e trabalhadores rurais da
Paraíba; Chico Mendes, destacado ambientalista e defensor da Amazônia; e
Marielle Franco, vereadora do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), assassinada pelas milícias.
Nosso Brasil escravocrata,
quando ainda colônia, conviveu com as bandeiras e com os capitães do mato. Na
República Velha e mesmo durante os anos da Constituição de 1946, o latifúndio impunha no
campo sua lei e vontade pelas mãos de jagunços e pistoleiros de aluguel sob as
vistas de uma Justiça cúmplice. Nada muito diferente dos dias de hoje, em que
assassinatos de representantes dos trabalhadores rurais continuam impunes.
ESQUADRÕES DA MORTE
Também é
preciso lembrar da prática da tortura como política de Estado e do assassinato
de opositores no Estado Novo (1937-1945) e durante a longa Ditadura Militar
(1964-1985). Nos porões da Operação Bandeirantes —financiada por empresários e
organizada por policiais civis e militares das Forças Armadas, com pleno
conhecimento de seus estados-maiores e dos presidentes militares de plantão—,
surgiram facções criminosas que passaram a controlar o jogo do bicho e o
tráfico de drogas. Essas facções muitas vezes usavam dinheiro e propriedade dos
presos torturados ou assassinados para financiar suas atividades. Um exemplo
dos expoentes dessa prática odiosa foi o capitão Guimarães, famoso no Rio de
Janeiro e nos carnavais da Unidos de Viradouro.
Quando cheguei
em São Paulo, em 1961, ainda bem jovem, era comum se ouvir sobre as práticas
violentas e criminosas da polícia mineira e também sobre esquadrões da morte,
grupos de extermínio que atuavam à sombra dos governos e da Justiça. O mais
famoso era o comandado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, de São Paulo.
Esses
esquadrões, além de assassinar “suspeitos” e desovar “presuntos”, vendiam
proteção para comerciantes e ficavam com os despojos e bens dos assassinados ou
extorquidos. Como é sabido, esses mesmos policiais civis e militares serviram
depois à ditadura e se associaram aos Doi- Codi na repressão criminosa às
oposições em geral, e não só aos guerrilheiros, como provam os covardes
assassinatos do deputado Rubens Paiva e do jornalista Vladimir Herzog, entre
tantos outros.
HERANÇA DOS PORÕES
As práticas
criminosas que pareciam ter sido enterradas no processo de redemocratização do
país começaram a ressurgir pela conivência de governantes com o crime
organizado e a violência policial e pela falência das políticas públicas —não
só a de segurança— nas grandes cidades brasileiras. O nome no século 21 dos que
foram os esquadrões da morte que extorquiam e matavam é milícia. As milícias,
que se espalham pelo país, de Belém a Porto Alegre, já controlam 27,7% dos
bairros do Rio de Janeiro, onde vivem 2,178 milhões de pessoas, ou seja, 33,8% da população da cidade, segundo o
relatório “Expansão das Milícias no Rio de Janeiro” (íntegra – 1 MB), de janeiro deste ano,
produzido pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni/UFF) e Observatório
das Metrópoles (Ippur/UFRJ).
Apresentadas
por alguns governantes e muito especialmente pela família Bolsonaro como
solução para combater o controle de territórios pelo tráfico organizado e
trazer segurança à população, as milícias não passam de bandos de criminosos. A
pretexto de vender proteção às famílias e empresas, essas organizações,
compostas geralmente por ex-policiais militares, controlam a economia das
comunidades onde atuam e a vida de seus moradores. Vendem, ilegalmente,
serviços como os de energia, gás, TV. Também atuam no mercado imobiliário, no
de transporte, vendem produtos roubados e até controlam alguns órgãos públicos.
E se impõem pelo terror, por ameaças e pela chantagem, quando não pelo
assassinato de “inimigos” na disputa de territórios com o tráfico de drogas.
O avanço das
milícias é proporcional à ausência do Estado nesses territórios, onde fracassou
mais do que a política de segurança. Nesses locais também faltam educação,
saúde, atividades culturais, saneamento, transporte público e emprego para os
jovens. Carências crônicas, fruto da desigualdade social e da concentração de
renda, o problema mais agudo do país que emerge em toda sua dimensão nas
periferias das grandes cidades brasileiras e nas comunidades.
A pretexto de
combater o tráfico, as milícias vão expulsando, no caso do Rio de Janeiro, os
grupos de traficantes do Comando Vermelho, Amigos dos Amigos, Terceiro Comando
Puro para assumir seu lugar. Hoje, já respondem por 58,6% dos territórios sob controle do
crime organizado, de acordo com o relatório já citado. Da Barra da Tijuca a
Jacarepaguá temos um arco dominado pelas milícias, inclusive em bairro de
classe média, revelando uma coincidência entre a votação de Bolsonaro e seus
candidatos e esse território. Essa falência do Estado foi, em parte, camuflada
pela atuação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), que fracassaram, em
grande medida, pela corrupção, cooptação e colaboração de amplos setores da
Polícia Militar com o crime organizado.
Do controle de
territórios as milícias passaram ao controle político de eleitorados, com a
eleição de vereadores e deputados ligados a elas, o que também se verifica em
menor grau com o tráfico. Foi um salto rápido. Hoje temos representantes das
milícias não só nos legislativos, mas em governos e nas máquinas públicas, como
decorrência da corrupção e da cooptação de funcionários públicos. Políticas de
segurança, nomeações e promoções, legislação urbana, de transporte, são hoje,
em muitas câmaras municipais e assembleias legislativas, determinadas pelas
milícias.
A bárbara e
covarde chacina de Jacarezinho é mais um capítulo da falência da segurança
pública, que infelizmente não conseguiu ser detida nem pelas UPPs, nem pelas
operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem). A pura e simples eliminação,
assassinato, execução, como nos tempos dos esquadrões da morte de triste
histórico no Rio de Janeiro —as tragédias de Vigário Geral, Alemão e Calendária
não nos deixam esquecer— é a opção pela guerra como solução.
Como revelam
fotos e vídeos da chacina e depoimentos de moradores, 28 jovens, 13 dos quais
sequer eram investigados, foram assassinados a sangue frio, executados, quando
se entregavam ou quando encontrados em casas onde se esconderam. Tudo isso na
frente de famílias e crianças. E levanta-se suspeita sobre a morte do policial
civil André Frias, pois foi baleado quando descia de um veículo policial e não
em confronto.
Estamos falando
de um ato de barbárie pela mão do Estado por meio de sua Polícia Civil. E não
se trata de um caso isolado. Infelizmente, trata-se de um padrão, de uma
política planejada que substitui a prevenção, a inteligência, a presença do
Estado com políticas públicas para as favelas e bairros, e para os jovens pela
guerra e extermínio de grupos e organizações criminosas. Uma guerra sem nenhum
efeito prático na diminuição do tráfico ou do aliciamento de menores, razão
apresentada para a operação.
DEBATE NACIONAL
A opção do povo
não pode ser escolher entre o tráfico e as milícias. E o país não pode aceitar
a pena de morte para suspeitos. Suspeitos que o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, chamou de “bandidos” e o delegado Felipe Curi, do
Departamento Geral de Polícia Especializada do Rio de Janeiro, considera
criminosos como se condenados fossem, sem o devido processo legal, substituindo
a Justiça e instituindo, na prática, a pena de morte, proibida pela Constituição
Federal.
Gravíssimo é o
fato de a operação da Polícia Civil em Jacarezinho ter sido feita à revelia da
decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), de junho de 2020, que proibiu operações em favelas do Rio durante a pandemia.
E mais grave ainda o que disse o presidente Jair Bolsonaro ao dar parabéns, no Twitter, à Polícia do Rio de
Janeiro pela operação: “Ao
tratar como vítimas traficantes que roubam, matam e destroem famílias, a mídia
e a esquerda os igualam ao cidadão comum, honesto, que respeita a lei e o
próximo. É uma grave ofensa ao povo que há muito é refém da criminalidade”.
A letalidade
trágica da política de segurança no Rio de Janeiro e em todo país, expressa no
altíssimo número de mortos (944, incluindo policiais, desde a decisão do
STF) exige uma imediata e radical mudança em toda a estrutura policial e na
política de segurança pública. As medidas precisam passar, também, pela reforma
do sistema penitenciário, pela mudança na legislação sobre drogas que trata o
usuário como traficante e pela revogação de toda legislação, via decretos de
Bolsonaro, de liberalização de armas promovida à revelia do Estatuto do
Desarmamento e das decisões judiciais.
A repercussão
da chacina de Jacarezinho, em nível nacional e internacional, e o repúdio a ela
exigem uma resposta do Congresso Nacional: propor e debater uma nova política
de segurança pública sob pena de regredirmos à época dos esquadrões da morte e
grupos de extermínio agora diretamente pelas mãos do Estado e de suas polícias.
Exigem também uma resposta do STF, que teve sua decisão desrespeitada. Não se
pode permitir a impunidade dos policiais e superiores responsáveis pela
criminosa operação.
É uma urgência
nacional que a questão das milícias, do crime organizado, do tráfico e das
drogas seja prioridade nos debates da próxima campanha presidencial.
.
Veja: Pelo impeachment ou
pelo voto https://bit.ly/3uEnGxa
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