03 maio 2021

Contra a cultura


Entenda como todas as decisões da Lei Rouanet hoje estão nas mãos de um ex-PM

Governo Bolsonaro desmonta comissão da sociedade civil e não há previsão de edital, abrindo o caminho para a censura

João Pessarolo e Eduardo Moura, Folha de S. Paulo

 

Quem pleiteia dinheiro público para a produção de uma peça de teatro, um show ou uma exposição depende agora da aprovação quase que exclusiva de um ex-policial militar sem experiência na cultura e alinhado ao presidente Jair Bolsonaro.

O desmonte em curso de uma comissão da sociedade civil responsável por analisar os projetos que buscam recursos via Lei de Incentivo à Cultura, a Rouanet, transferiu para André Porciúncula Alay Esteves, o chefe do gabinete federal de fomento às artes, o poder de avaliar e de dizer sim ou não às milhares de propostas que pretendem chegar aos palcos todos os anos.

É possível traduzir isso em números —ao longo do ano passado, a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, a Cnic, avaliou 1.377 projetos nas áreas de artes cênicas, artes visuais, música, audiovisual, patrimônio cultural, humanidades e museus e memória, muitos dos quais debatidos por seus membros em reuniões mensais. Desde 2011, foram 45.488 projetos analisados pela comissão, segundo dados de um documento enviado à reportagem por um dos integrantes.

Instituída com a Rouanet, há 30 anos, a Cnic é um dos principais mecanismos para garantir a transparência da maior lei de fomento às artes do país, que distribuiu R$ 1,4 bilhão no ano passado. A comissão funciona como uma consultoria especializada oferecida de graça para o governo, já que os conselheiros, membros da sociedade civil com décadas de atuação em suas áreas da cultura, não são remunerados.

Também fazem parte da comissão servidores públicos das sete entidades vinculadas ao Ministério do Turismo, como a Fundação Biblioteca Nacional e a Funarte, representantes do empresariado e o secretário Porciúncula.

A comissão é ainda responsável por sanar dúvidas e dar o sinal verde ou não para projetos com discrepâncias ou pontos que levantem dúvidas no complexo processo até a obtenção de verbas públicas. Ou seja, há várias vozes, de diferentes setores das artes e de várias regiões do Brasil, debatendo itens problemáticos antes que um único centavo do contribuinte seja liberado, o que só ocorre depois da aprovação final do secretário de fomento.

Com a suspensão do trabalho do colegiado, desde o mês passado, esse processo se torna mais opaco, ao deixar nas mãos de um governo hostil às artes a análise de projetos, dando margem à escolha de acordo com o gosto pessoal e também à censura. A turma mais recente da Cnic teve a sua última reunião há pouco mais de um mês, momento no qual um novo colegiado já deveria estar encaminhado para assumir as funções a partir de abril, para um mandato de dois anos.

Mas o governo federal não publicou o edital de chamamento para a seleção dos novos membros, mesmo sendo cobrado pela comissão desde novembro do ano passado, segundo três conselheiros. Num áudio de uma reunião da comissão disponível no YouTube da Secretaria Especial da Cultura, Porciúncula diz aos conselheiros que “não se preocupem, vamos manter sim a Cnic em andamento, vocês são fundamentais”.

Procurado diversas vezes, Porciúncula não se manifestou, e o Ministério do Turismo, pasta sob a qual está a Secretaria Especial da Cultura, também não respondeu. Uma pessoa da secretaria que prefere não se identificar, contudo, afirmou que haverá um chamamento para selecionar os membros da nova composição da Cnic em breve.

Esta informação, entretanto, foi desmentida por uma portaria publicada no Diário Oficial desta quinta, que oficializa a centralização de poderes nas mãos de Porciúncula por um mecanismo chamado "ad referendum" e que revoga a delegação da aprovação de projetos.

De acordo com a Rouanet, o secretário Porciúncula pode analisar os projetos sem a participação do colegiado, mas, segundo Cris Olivieri, advogada consultora para arte e cultura, essa ferramenta foi usada pouquíssimas vezes em gestões passadas, e só em casos emergenciais.

Ainda assim, nos casos em que o “ad referendum” foi empregado, a comissão da sociedade civil estava em exercício, e não suspensa como agora, ela acrescenta.

Era comum que os ex-ministros da Cultura evitassem o uso desse mecanismo e procurassem fazer reuniões extras da comissão, “tanto que o 'ad referendum' não faz parte do repertório da turma da Cultura”, afirma Olivieri.

Na semana passada, 17 dos 21 conselheiros que fizeram parte da última comissão enviaram uma carta a Porciúncula e ao Secretário Especial da Cultura, Mario Frias, pedindo urgência na publicação do edital para selecionar os novos membros.

“Perder ou atrasar a constituição de um novo grupo só contribui para dificultar ainda mais a atuação de um setor já tão atingido pelos acontecimentos nos últimos anos”, diz o documento.

É importante ressaltar que a Cnic é a última etapa na avaliação de projetos que tramitam na Rouanet —antes, a proposta passa por uma análise de admissibilidade, pelo crivo das entidades vinculadas e também de pareceristas externos. Nessas fases, são checadas a adequação dos projetos à lei e a tabela de custos proposta, além de pedidas mais informações para os proponentes.

O desmonte da comissão é uma forma de o governo sufocar a Rouanet se valendo de um mecanismo da própria lei, de acordo com um dos conselheiros.

Isso se soma a outras atitudes recentes da Secretaria Especial da Cultura do governo Bolsonaro, como o atraso na publicação de centenas de projetos no Diário Oficial da União, o DOU, que assim ficam impossibilitados de captar as verbas e ser executados.

IRREGULARIDADE NO TEMPO DE PUBLICAÇÃO DE PROJETOS

Mesmo antes de Porciúncula centralizar as decisões finais dos projetos da Rouanet, o andamento das análises já vinha desacelerando —a média de tempo que um projeto de Lei Rouanet leva até ser publicado no DOU dobrou em comparação com 2020.

De acordo com dados da plataforma Salic, o Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura, um projeto levava em média 60 dias para ser publicado no ano passado. Em 2021, a média é de 116 dias.

O projeto "Sem Muros", do grafiteiro Lucas Nowalls, de Brusque, em Santa Catarina, por exemplo, foi enviado à Secretaria Especial da Cultura em outubro do ano passado. Demorou 52 dias até que tivesse a primeira aprovação, mas não foi publicado até hoje. Ao todo, Nowalls espera há quase 200 dias a publicação do seu projeto.

“É o meu primeiro projeto. Eu não tive retorno, não. Eu liguei e tive a informação da portaria que saiu em dezembro, que criou um funil de aprovação por causa do passivo [de prestação de contas].”

Esta portaria busca evitar o aumento do passivo de prestações de contas da Secretaria Especial da Cultura. Assim, o órgão prevê que só seis processos da Rouanet sejam analisados diariamente, ou seja, uma média mensal de 120.

Por isso, a secretaria afirmou que priorizará projetos referentes ao patrimônio material e imaterial, atividade museológica, projetos plurianuais e conservação de acervo. “A resposta foi essa, que criou um funil e que vai demorar bastante. A pessoa que me atendeu verificou e realmente só falta uma assinatura para poder dar início à captação”, conta o grafiteiro.

Alguns projetos grandes também têm demorado bastante. “Amazônia”, do fotógrafo Sebastião Salgado, por exemplo, foi enviado à secretaria no dia 26 de junho do ano passado, alguns dias após Mario Frias ter assumido a pasta. A proposta demorou 47 dias para que se transformasse em projeto, mas até hoje não foi publicada no Diário Oficial.

Segundo Álvaro Razuk, coordenador do projeto, foi necessário refazer o pedido, já que a Secretaria Especial da Cultura teria sofrido um ataque hacker ao seu sistema, o que corrompeu "Amazônia". Com isso, foi feito um novo projeto, aprovado pela Cnic em dezembro mas até hoje não publicado no DOU.

"A gente tem uma urgência e sem essa publicação eu nao consigo nada", diz Razuk, sobre dar início à execução. "Eu acredito que seja uma questão técnica. Mas acho que não estamos numa situação normal."

A mesma exposição tem previsão de estreia em Paris, em maio, mas segue sem data no país de seu autor e de seus fotografados.

Outros projetos recentes, vindos de grupos mais graúdos, porém, levaram um tempo menor para chegar ao Diário Oficial, embora não tenham completado todo o processo. Alguns foram apresentados depois do projeto do grafiteiro de Brusque, mas já foram publicados.

O projeto Pixar in Concert, da Aventura Teatros, que tem no catálogo grandes musicais, foi apresentado à secretaria duas semanas depois do projeto do grafiteiro, no fim de outubro do ano passado.

Na primeira semana de dezembro já estava publicado no DOU, podendo iniciar a captação dos R$ 4,3 milhões aprovados —até a publicação desta reportagem, o projeto captou R$ 1 milhão. De acordo com o sistema Salic, foram 36 dias da entrada à publicação, um terço do tempo médio total que os projetos levam.

O projeto atualmente se encontra na fase "encaminhado para análise técnica". Segundo a Aventura Teatros, o projeto foi encaminhado à Funarte em janeiro para a emissão do parecer técnico. Em nota, a produtora afirma que "faz exatamente seis meses que o projeto foi inscrito, já captou e ainda não está homologado para execução”.

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Veja: A poética ousada e cativante de Joana Côrtes https://bit.ly/3xdnKW8

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