Me
chama de jacaré, que eu gosto
Cícero Belmar
Eu sabia que
iria me transformar num jacaré e estava feliz por essa oportunidade única. Não
via a hora de fazer a mutação. Sairia do posto de vacinação direto para o
pantanal da vida cotidiana, com muito prazer. Mas, inesperadamente, caí no
choro.
Sou um caboclo chorador.
Minha mãe, além de um irmão e uma irmã, são a mesma coisa. A nossa emoção se
expressa nos olhos. Quando a moça me avisou que eu iria receber uma dose de
AstraZeneca, e perguntou qual o braço que eu gostaria de receber a primeira
dose, comecei a chorar.
Pelo que dizem, crocodilos
é que choram. Se fosse assim, já estaríamos falando de outra espécie, de outro
réptil. Chorei feito um jacaré mesmo, coisa família. E não lembro da última vez
que senti tanta emoção.
Há uma música que diz:
“Chorei, não procurei esconder, todos riram”. Riram mesmo, chamei a atenção. No
posto, houve quem imaginasse que eu estava chorando por medo da agulha. Que
nada, eu tenho medo é do vírus da covid-19, de político escroto e da covardia
da máfia miliciana.
Não acho que foi mico, nem
dei vexame. Foi de emoção o meu choro, as lágrimas caíam de quatro em quatro.
Eu tinha planejado fazer umas coisas, fotos com plaquinha e tudo, para postar
nas redes sociais. Não fiz nada, só chorei. Não gritei viva o SUS! Não disse
vacina para todos!
O curioso é que a agente de
saúde também se emocionou. Ela ficou sensível porque eu explicava que estava
chorando porque lembrei dos amigos que partiram. Três homens e uma mulher, que
tive a graça de conhecer nesta dimensão. A vacina não chegou a tempo.
Poderiam estar vivos,
comemorando conosco, mas agora fazem parte das estatísticas. Pessoas com quem
partilhei minha vida e, com a morte delas, morri um pouco também. Beto, Lúcia,
Carlinhos e Tarcísio. Como dói.
Ao final, saí do posto
muito grato pela oportunidade que me foi dada de continuar vivo. Tive covid-19
no ano passado, fiquei com sequelas, superei. Hoje, sou um jacarezinho fofo,
com bocarra, e dentes afiados.
Agradeço a Deus, à ciência,
cientistas, pesquisadores, médicos, pessoas que estão aplicando as vacinas. Ser
imunizado contra um mal que nos mata é só uma das razões da minha felicidade. A
principal, na verdade.
Para além de vencer a
pandemia, ser vacinado é também uma atitude política e afirmativa contra um
governo negacionista, que fere indefesos, que tira onda com a nossa dor; e
gosta de nos ver na pior. Que enterrou milhares de brasileiros, nossos afetos.
A marca da vacina, no
braço, é o sinal de nossa resistência. Se tivermos alguma reação ao imunizante,
será o símbolo da nossa aflição. Não vamos nos esquecer dos dias que choramos
sem socorro e sem esperança.
Se hoje somos aqueles que
ainda podem sorrir, com plaquinhas, nas redes sociais, também somos os
sequelados. Temos muito respeito pela dor que acusou nossos limites. Ser
vacinado é o status de quem, agora, faz parte de um clube que assiste à vitória
da ciência sobre a cretinice.
Quem se vacina recebe no
braço uma dose de misericórdia. Saímos dos postos com a sensação de
renascimento e a convicção de que não é por acaso que continuamos. É como se,
eureca, entendêssemos nossa missão.
Gratidão exige resposta
afetiva, com alegria. Chorei e vou chorar de novo, na segundona, em setembro. É
como na música Sol de Primavera, de Beto Guedes, que mal sei a letra: “Já
sonhamos juntos. Muitos se perderam no caminho… Agora, quero ver crescer nossa
voz no que falta sonhar”.
Cícero Belmar é escritor e jornalista. É
membro da Academia Pernambucana de Letras.
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A CPI continua botando mais caroço
para o indigesto angu de Bolsonaro https://bit.ly/3dkvSvC
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