29 junho 2021

Crônica de vacinado

Me chama de jacaré, que eu gosto

Cícero Belmar

 

Eu sabia que iria me transformar num jacaré e estava feliz por essa oportunidade única. Não via a hora de fazer a mutação. Sairia do posto de vacinação direto para o pantanal da vida cotidiana, com muito prazer. Mas, inesperadamente, caí no choro.

Sou um caboclo chorador. Minha mãe, além de um irmão e uma irmã, são a mesma coisa. A nossa emoção se expressa nos olhos. Quando a moça me avisou que eu iria receber uma dose de AstraZeneca, e perguntou qual o braço que eu gostaria de receber a primeira dose, comecei a chorar.

Pelo que dizem, crocodilos é que choram. Se fosse assim, já estaríamos falando de outra espécie, de outro réptil. Chorei feito um jacaré mesmo, coisa família. E não lembro da última vez que senti tanta emoção.

Há uma música que diz: “Chorei, não procurei esconder, todos riram”. Riram mesmo, chamei a atenção. No posto, houve quem imaginasse que eu estava chorando por medo da agulha. Que nada, eu tenho medo é do vírus da covid-19, de político escroto e da covardia da máfia miliciana.

Não acho que foi mico, nem dei vexame. Foi de emoção o meu choro, as lágrimas caíam de quatro em quatro. Eu tinha planejado fazer umas coisas, fotos com plaquinha e tudo, para postar nas redes sociais. Não fiz nada, só chorei. Não gritei viva o SUS! Não disse vacina para todos!

O curioso é que a agente de saúde também se emocionou. Ela ficou sensível porque eu explicava que estava chorando porque lembrei dos amigos que partiram. Três homens e uma mulher, que tive a graça de conhecer nesta dimensão. A vacina não chegou a tempo.

Poderiam estar vivos, comemorando conosco, mas agora fazem parte das estatísticas. Pessoas com quem partilhei minha vida e, com a morte delas, morri um pouco também. Beto, Lúcia, Carlinhos e Tarcísio. Como dói.

Ao final, saí do posto muito grato pela oportunidade que me foi dada de continuar vivo. Tive covid-19 no ano passado, fiquei com sequelas, superei. Hoje, sou um jacarezinho fofo, com bocarra, e dentes afiados.

Agradeço a Deus, à ciência, cientistas, pesquisadores, médicos, pessoas que estão aplicando as vacinas. Ser imunizado contra um mal que nos mata é só uma das razões da minha felicidade. A principal, na verdade.

Para além de vencer a pandemia, ser vacinado é também uma atitude política e afirmativa contra um governo negacionista, que fere indefesos, que tira onda com a nossa dor; e gosta de nos ver na pior. Que enterrou milhares de brasileiros, nossos afetos.

A marca da vacina, no braço, é o sinal de nossa resistência. Se tivermos alguma reação ao imunizante, será o símbolo da nossa aflição. Não vamos nos esquecer dos dias que choramos sem socorro e sem esperança.

Se hoje somos aqueles que ainda podem sorrir, com plaquinhas, nas redes sociais, também somos os sequelados. Temos muito respeito pela dor que acusou nossos limites. Ser vacinado é o status de quem, agora, faz parte de um clube que assiste à vitória da ciência sobre a cretinice.

Quem se vacina recebe no braço uma dose de misericórdia. Saímos dos postos com a sensação de renascimento e a convicção de que não é por acaso que continuamos. É como se, eureca, entendêssemos nossa missão.

Gratidão exige resposta afetiva, com alegria. Chorei e vou chorar de novo, na segundona, em setembro. É como na música Sol de Primavera, de Beto Guedes, que mal sei a letra: “Já sonhamos juntos. Muitos se perderam no caminho… Agora, quero ver crescer nossa voz no que falta sonhar”.

 

Cícero Belmar é escritor e jornalista. É membro da Academia Pernambucana de Letras. 

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