16 junho 2021

Palavra de poeta: Neruda

O sonho
Pablo Neruda
 
Caminhando nas areias
decidi deixar-te.

Pisava um barro obscuro
que estremecia,
e afundando-me e voltando a sair,
decidi que saísses
de mim, que me eras pesada
como pedra cortante,
e planeei a tua perda
passo a passo:
cortar-te as raízes,
soltar-te sozinha ao vento.

Ai nesse minuto
coração meu, um sonho
com as suas asas terríveis
cobria-te.
Sentias-te engolida pelo barro,
e chamavas-me e eu não te acudia,
ias, imóvel,
sem defesa
até te afogares na língua de areia.

Depois
a minha decisão cruzou-se com o teu sonho,
e dessa ruptura
que nos partia a alma
surgimos de novo limpos, nus,
amando-nos
sem sonho, sem areia,
completos e radiantes,
selados pelo fogo.

[Ilustração: Fernando Botero]

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