16 julho 2021

Uma crônica de fim de noite

O porco imperador

Leonardo Marques*

 

Impressionantes são os meios como as histórias nos chegam. Sempre de ouvidos bem abertos, procurei fazer do pouco tempo que tenho sido hóspede na Terra uma grande experiência, capaz de compensar as linhas do tempo e atravessar as dimensões do Universo. Sinto que perco a cor nos dias que passo direto por alguém que delira na rua. Estou severamente pálido ultimamente. Mas ouvi uma história esses dias que me fez rir e também sentir embrulhos no estômago.

Quem me contou foi uma mosca, cansada de viagem, que me pediu aposento na tigela com o macarrão de ontem. Ela vinha diretamente de uma pequena cidade no interior da Paraíba. Enquanto eu almoçava, ela me relatava ao passo em que esfregava as patas:

Tive que me mudar; o Porco Imperador tomou tudo que eu tinha. Dia após dia, desde que eclodi, minha vida naquele chiqueiro era um inferno!

Mas tudo bem, você mal me conhece, né? Vou contextualizzzar.

O Porco Imperador era farto, roliço e reluzzzente. Banhava-se, apenas, nas melhores lamas do açude. Andava com pompa, apesar de ter um rabo fino. Sujeito escroto! A realidade é que o Porco Imperador era muito mais ordinário do que aparentava, por isso ele fazzzia questão de que todos vissem o quão extraordinário ele conseguia parecer ser.

As relações naquela roça eram peculiares. Ele se casou com uma cabra, imagine só! (Cá pra nós, quando saí de lá, de cabra só lhe restavam os pensamentos.) Mas o fezzz não por amor, mas por ser um ordinário.

Pense comigo: um porco ordinário no meio de outros porcos seria só mais um porco, certo?

– “… Certo.” Respondi, franzindo a testa curioso.

A mosca prosseguiu:

Pois bem, aquele sujeito jamais suportaria viver entre outros porcos, quem dirá casar-se com uma igual a ele. Seria seu fim.

Então casou-se com uma cabra e dedicou todos os dias de sua vida extremamente ordinária a apagar dela a sua personalidade. Fazzzia o mesmo com todos ao seu redor: os carrapatos que se encrostavam em seu pescoço, os jumentos que carregavam quilos e quilos de lavagem pra ele comer, os bodes que nele confiavam, as capivaras, suas amigas mais indiferentes; e comigo, que limpava os restos de comida que ficavam perdidos no topo de sua cabeça. (Ele comia como uma fera selvagem!) Eu saía ganhando, também, claro. Mas… não aguentei.

A gota d´água foi na semana retrasada. Acordei pela manha, encostei na primeira pocinha que vi. Bebi minha água, esfreguei os alongamentos matinais e saí voando pelo roçado. A cabra, sua esposa, de tão abatida, andava a passos lentos para a leiteira. Pobre criatura. Passei. Chegando no chiqueiro, o Porco Imperador grunhia aos quatro ventos sua nova aquisição: um argola de narizzz dourada! Brilhava. Ele estava realmente orgulhoso. Pousei num canto e fiquei observando.

Horas mais tarde estava proseando com um bode quando o porco passou enfurecido, grunhia ferozzzmente… “Lavagem, lavagem, estou cheio de lavagem! Só penso em lavagem. QUERO MAIS LAVAGEM!”, esbravejava enquanto a cabra e os carrapatos ouviam perplexos. Fiquei horrorizzzada. Como poderia? O possuidor de uma argola tão reluzzzente como aquela estar tão indignado por lavagem?

Foi quando me toquei que nem toda lavagem do mundo satisfaria aquele porco, que insiste em ser extremamente ordinário. Percebi que limpar os restos de comida daquela cabeça vazzzia vale muito mais do que encher a barriga. Eu estava perdendo, então. Deu.

Saí, de barriga oca, passei poucas e boas mas cá estou. Viva, felizzz. E ainda posso ter uma boa prosa com um bom sujeito como você.

“Obrigado… na verdade, a sua história é de embrulhar o estômago, mas me corou as bochechas…”, agradeci desconsertado.

– De nada, respondeu a mosca. E imediatamente completou: Posso aproveitar aquela banana velha na fruteira pra tirar um cochilo?

Respondi que sim, que ela ficasse à vontade. A casa era dela.

Bem-humorada, respondeu: Obrigado. zZz…

*Estudante universitário, cronista

[Ilustração:  Reprodução fotográfica | O Impossível, 1946, de Maria Martin]

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Uma tema político, veja: Quem avisa que vai melar o jogo com tanta antecedência bom sujeito não é https://bit.ly/2TUCwlA

Um comentário:

  1. Excelente crônica, sei que sou meio suspeita de falar rsrs!

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