O bueiro da fábrica
Marco Albertim *
A única rua onde se vê o muro lateral da fábrica chama-se rua do Curtume. Lá, há quarenta anos, cabras e bois eram abatidos. O tempo não fez justiça à principal atividade do lugar, batizando a rua de rua do matadouro ou do abatedouro. Os anos homenagearam os couros e peles dos animais, expostos em varais paralelos, dias seguidos, até que ficassem devidamente curtidos.
O fedor da putrefação da gordura misturava-se ao dos excrementos dos
bichos, na superfície de areia fina; embolava-se no ar para ser soprado acima
dos telhados das poucas casas. As casas, cobertas com telhas soltas, não tinham
forro; daí resultava que o vapor da decomposição infiltrava-se nas moradias,
fazendo pouco do cheiro escasso do feijão em panelas de barro; ao meio-dia e
começo das tardes, com o sol a pino.
O abatedouro não existe mais. A rua com apenas um quarteirão foi
ocupada, de um lado e de outro, por moradias conjugadas. Uma porta de acesso e
uma janela na frente. Durante o dia, ninguém põe um assento na calçada nem se
debruça na janela para espiar quem poreja do lado de fora. À noite, as calçadas
são tomadas por cadeiras com assentos de vime e encostos de madeira. Transitar
à noite é comum. Ninguém mais repara em quem anda rumo aos paredões da fábrica,
para, na extremidade norte, descer ao Baldo do Rio. Mesmo no período da moagem,
quando a usina de açúcar despeja a calda da cana no rio, incensando as duas
margens com o bodum de madeira apodrecida. Nos dois lados da compridez do rio,
há casas de taipa abrigando pescadores. Com a calda, o rio tinge-se de um
pretume doentio; os peixes morrem; até os lambaris, de couro e barbatanas
resistentes, boiam na tona. As canoas, atadas aos moirões, têm a proa inerte,
com brechas nas junturas de madeirame; são como bocas com poucos dentes ou
desdentadas.
Há uma única atividade que mantém ocupada uma dúzia de operários,
oleiros na fabricação de tijolos e telhas. O massapê na Zona da Mata é farto,
ainda que ameaçado pelo plantio expansivo da cana. Não há muros impedindo o
acesso à olaria, nem vigia com capotes escuros para confundir-se com a noite.
Assim, depois de descer o beco na extremidade do paredão da fábrica, os
operários se reuniram; uns em pé, outros sentados em pilhas de tijolos já cozinhados.
Nenhum usando macacão, mas todos, uns mais outros menos, com fiapos de algodão
nos cabelos, nas sobrancelhas, nas têmporas vincadas.
- Se vai haver demissão, não há certeza. O gerente diz que se houver
demissão, a fábrica não tem dinheiro para pagar a indenização.
- Vão pagar com as redes.
- Nas casas dos operários, rede de dormir é sinônimo de pobreza. Pra que
vamos querer mais redes?
- E se fizermos uma greve?
- Se fizermos uma greve, a fábrica fecha de vez. Não seremos indenizados
nem com redes!
- Vamos ocupar a fábrica e exigir a desapropriação para que seja
administrada por nós. Faremos uma cooperativa.
- A polícia invade a fábrica. Como vamos resistir?
Não houve resposta. Ninguém se atreveu a antecipar o pior. Também não
houve tempo. O espectro de um destacamento policial entrando no corredor da
fábrica, cercando o galpão com operários ao lado das máquinas fiandeiras, deu
lugar a outro tão vivo quanto terrível. Uma vintena de homens e mulheres
apareceram na olaria. Os homens tinham as calças amarradas com cordões na
cintura, uns descalços, outros com os pés no chão duro do massapê seco. As
mulheres com vestidos de uma peça só, dos pés à cabeça; os cabelos amarrados
atrás, com tufos ralos, soltos, acima da testa. Junto a cada uma, moleques com
os cambitos finos, camisas rotas e sem botões para atar os lados da frente.
Mesmo sendo noite, não foi difícil para os operários distinguir em cada rosto
dos recém-chegados, na comissura das bocas, na respiração viciosa da calda do
rio, os pescadores.
Os dois grupos olharam-se sem susto, com interrogações.
- A fábrica vai fechar - disse o que viera na frente, após certificar-se
de que todos haviam se compactado. - Não há peixe para ser pescado. E quando a
fábrica fechar, vamos vender o peixe a quem?
Às dez da noite, o bueiro da fábrica soltou o apito bufante. Da boca
redonda da chaminé, saíram golfadas de fumaça fuliginosa. O cheiro juntou-se à
podridão azeda vinda do rio. Homens e mulheres vincaram as testas,
entreolhando-se. O ruído na chaminé espalhara a suspeita de que, na manhã
seguinte, as fiandeiras ficariam mudas.
* Marco Albertim, já falecido, militante do PCdoB, participou da resistência à ditadura militar. Jornalista e escritor
Veja: Um encontro entre velhos companheiros de luta https://bit.ly/3kbDHqq
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